Título: Aids se alastra entre os mais idosos
Autor: Simone Iwasso
Fonte: O Estado de São Paulo, 01/05/2005, Vida&, p. A26

O Ministério da Saúde, as organizações não-governamentais e os médicos infectologistas alertam: homens e mulheres na terceira idade estão fazendo sexo sem prevenção e se contaminando com o vírus da aids. E não é só isso. Os números da doença em pessoas com mais de 50 anos crescem no País como em nenhuma outra faixa etária - de 1993 a 2003, houve um aumento nos casos confirmados de 130% entre os homens e de 396%, entre as mulheres. Uma trajetória ascendente, que contrasta com uma certa estabilização em outras faixas etárias e grupos sociais. Feita a constatação e analisadas as possíveis explicações para o crescimento de portadores do vírus, o Programa Nacional de DST/Aids e a Coordenação de Saúde do Idoso, ambos ligados ao Ministério da Saúde, firmaram uma parceria e elaboraram um documento que será enviado como referência aos programas estaduais e municipais. O objetivo é incluir os idosos entre os grupos que precisam de atenção especial quanto à prevenção - ao lado de homossexuais, prostitutas, viciados em drogas injetáveis, jovens heterossexuais que estão iniciando a vida sexual e mulheres casadas.

Além disso, a parceria prevê a elaboração de folhetos explicativos, cartilhas para ser distribuídas à população, cartazes e campanhas publicitárias, que deverão ser veiculadas na televisão e no rádio. Tudo desenvolvido com uma linguagem diferente, para conseguir atingir uma população que não está acostumada ao uso do preservativo e se sente imune aos riscos da contaminação - e também foi acostumada a assistir a propagandas voltadas apenas para a sexualidade dos jovens.

"Nós temos agora uma preocupação muito maior com a aids em pessoas acima de 50 e 60 anos do que tínhamos antes, porque começaram a aparecer muitos casos novos. Pelas estatísticas, com o aumento da expectativa de vida, das oportunidades sociais e dos medicamentos para disfunção erétil, a tendência é esses números aumentarem se nós não fizermos alguma coisa", afirma Cristina Pimenta, consultora da Unidade de Prevenção do Programa Nacional de DST/Aids. "Por isso, estamos elaborando essa campanha, que deverá ficar pronta no segundo semestre."

O documento prevê ações que incentivam o uso do preservativo feminino e masculino, com distribuição gratuita em programas voltados para a terceira idade, e a inclusão do teste de HIV nos procedimentos feitos nessa faixa etária - uma rotina que há mais de 20 anos, desde o início da epidemia, acaba sendo adotada de tempos em tempos para um grupo específico, considerado mais vulnerável no momento.

Pelo último boletim epidemiológico do programa, com os dados concluídos de 2003, existem 2.245 homens e 1.261 mulheres com a doença acima dos 50 anos - em 1993, eram 975 e 254, respectivamente.

Entre os com mais de 60 anos, a taxa de incidência está em 8,5 para cada 100 mil habitantes para os homens e 3,9 para cada 100 mil, para as mulheres. Números aparentemente pequenos, mas que há uns 15 anos apareciam como traço nas estatísticas e hoje representam 2,5% do total de casos confirmados no Brasil.

SILÊNCIO E TABUS

No entanto, segundo quem trabalha com a questão, a prevenção da aids entre os idosos esbarra em preconceitos culturais, associados a uma visão assexuada das pessoas mais velhas. "Ninguém pensa na vovó e no vovô fazendo sexo. Todo mundo promove bailes para terceira idade, viagens, incentiva que eles saiam de casa e não pensam que vai rolar sexo. Mas se estão ativos para dançar, passear e estudar, também estão para namorar", resume a educadora sexual Maria Helena Vilela, diretora do Instituto Kaplan.

Em parceria com o Fundo Social de Solidariedade e a Pfizer, o instituto tem desenvolvido aulas de educação sexual para a terceira idade. Em setembro, fará, com as unidades do Sesc, um grande evento para orientar os idosos sobre os riscos que correm ao se relacionar sem preservativos. "Aquela idéia do idoso dentro de casa, pintando e bordando, não existe mais. Eles estão é pintando e bordando no mundo."

Pela experiência do instituto, ela afirma que é mais difícil convencer idosos do que adolescentes sobre os riscos da doença. "Não se pode infantilizar o idoso. Temos de orientar, mostrando que respeitamos a vivência dele, mas dizendo que ele também tem coisas para aprender." Trata-se de uma lição que a sociedade também vai precisar aprender, se quiser evitar que a epidemia se alastre ainda mais entre a população mais velha.

Para a Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), o próprio desconhecimento e o espanto que o fato de idosos estarem contaminados causa nas pessoas representa o preconceito que ainda existe com o sexo na terceira idade. "Os órgãos públicos, as entidades, todos nós, precisamos rever nossos conceitos. Descobrir como falar da prevenção para esse grupo. Uma pesquisa mostrou que 39% deles se dizem ativos sexualmente, só que desprotegidos", afirma Veriano Terto Júnior, coordenador da entidade. "Não temos quase dados nem pesquisas sobre esse fato. Eles ficam relegados ao silêncio e, provavelmente, vão aumentar ainda mais as estatísticas."

Um paradoxo, como analisa Cristina Pimenta, do Programa Nacional de DST/Aids, formado pela valorização das atividades para a terceira idade, que fazem que os idosos tenham uma vida social mais intensa, por uma qualidade de vida maior, graças aos avanços da medicina, e pela falta da educação sexual para o mundo dos relacionamentos na época da aids.

INCREDULIDADE

Quem se contaminou conta que, além da reação muitas vezes negativa da família, é preciso lidar ainda com a incredulidade do próprio médico. "O médico me perguntou se foi transfusão de sangue. Não acha que velho pega a doença. Minha filha, então, ficou muito revoltada comigo", comenta a empregada doméstica aposentada Corina da Silva Santos, de 60 anos, que se infectou com um parceiro há cinco anos, depois que o marido morreu.

"Eu namorei e achava que não precisava me cuidar porque estava velha. Mas não vou me entregar para essa doença. Tento ajudar quem passa por isso também e acaba sendo renegado pela família. Tem um senhor de 93 anos que ficou sozinho. Tem uma senhora que foi espancada pelos filhos", relata Corina, que mantém o Grupo Viva a Vida, uma rede informal de apoio aos portadores idosos da doença que funciona no Hospital dos Servidores do Rio de Janeiro.

A aposentada Beatriz Pacheco, de 59 anos, também enfrentou o espanto da família quando descobriu a doença, após a morte do marido por HIV. "Meu filho falou: 'Mãe, eu nasci na época da aids e me choca mais a senhora ser sexuada do que estar com a doença'", conta ela, que se dedica a fazer palestras e orientar mulheres na mesma condição.

"Nós somos da geração das mulheres que se casaram virgens, nos casamos com um príncipe encantado. Agora, descobrimos que ele transmitiu a doença para nós. E de repente nos vemos com HIV. É absolutamente cruel", conta ela, casada novamente, com um homem sem o vírus. "Temos de redescobrir o prazer e aprender a usar camisinha. Mas é uma mudança social. Eu e meu marido vamos à farmácia comprar preservativo e os vendedores riem da gente, fazem brincadeiras ofensivas, uma coisa totalmente desnecessária", diz.

No tom de quem aprendeu a aceitar a doença e aproveitar da melhor maneira possível a vida, ela critica a falta de políticas para a prevenção da aids entre os idosos. "A aids não começou com cara de velho, com cara de mulher. Somos velhos e ficamos relegados a último plano", afirma. São pessoas como essas que começaram a chamar a atenção para o problema. Sem vergonha de seu exame de sangue e de seus atos, reúnem-se em hospitais, associações e grupos de ajuda mútua para discutir e cobrar ações.

"A gente tem de falar e falar e falar que a doença existe e qualquer um pode pegar. Não pode a esta altura da vida, com tudo isso que a gente passa, ainda ficar com vergonha e desistir. Tem de ajudar para que não aconteça com outros", resume Corina.