Título: Direitos e garantias fundamentais
Autor: Onofre Carlos de Arruda Sampaio
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Há poucos dias tratavam os mais prestigiosos jornais do País da forma como vêm sendo conduzidas certas ações da Polícia Federal realizadas com clara extravagância. Nesses episódios, como foi ressaltado pelo ex-deputado federal e atual prefeito de Aracaju, Marcelo Déda, desvia-se do bom caminho, descuida-se do estrito interesse público e se resvala para a propaganda gratuita e para o teatral. A conseqüência é a exposição abusiva com que são tratados os cidadãos que, já sob os pesados ônus decorrentes da sua submissão a investigações e processos, cujos resultados não se podem antecipar, se tornam presas de autoridades sequiosas de publicidade. Mais recentemente, dá conta a imprensa de invasões de escritórios de advocacia, visando a vasculhar arquivos de clientes, em busca de informações, não obstante submetidas à inviolabilidade constitucionalmente prevista.

As disposições constitucionais e infraconstitucionais relativas ao sigilo profissional do advogado não foram estabelecidas em benefício do particular, mas visam a permitir o adequado cumprimento das leis e o funcionamento da Justiça. É por isso que a Constituição diz, em seu artigo 133, que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei".

Se as consultas e confidências feitas ao advogado fossem postas à disposição das autoridades, certamente nenhum cidadão se sentiria encorajado a fazê-las, sobretudo diante do reconhecido cipoal legislativo nacional e do mau funcionamento das nossas instituições.

Obviamente, não se defende a proteção da impunidade de quem quer que seja, mas apenas e tão-somente que as autoridades ajam segundo os estritos termos do devido processo legal.

Submeter pessoas a desnecessário constrangimento e exposição pública, realizar e autorizar buscas e apreensões sem justificativa muito bem fundamentada, sem precisar claramente o local, a pessoa, os objetos a serem buscados e apreendidos, violar o sigilo profissional do advogado dando busca em seus arquivos não produzem melhores resultados do que agir sem esses excessos e ilegalidades, mas apenas geram mais barulho, confusão e nulidades processuais.

No caso dos escritórios de advocacia, a única justificativa que autorizaria o rompimento do sigilo e a busca em seus arquivos seria a prévia comprovação de prática de crime pelo advogado, e não meras alegações ou suspeitas relacionadas às atividades deste ou daquele cliente, levantadas por esta ou aquela autoridade encarregada de investigação.

A nossa História está cheia de casos assim mal começados e que acabaram em grande fracasso, quando não em rematadas tragédias, como o emblemático processo contra a Escola Base, levado a cabo aqui, em São Paulo, há alguns anos.

A Polícia Federal, que, com merecidos encômios, vem fazendo um trabalho de profilaxia nos seus próprios quadros e tem realizado ações profícuas de inteligência na apuração de delitos de elevada complexidade, não precisa nem se beneficia do uso de modus operandi que pode comprometer a credibilidade da sua atuação.

A magistratura, por sua vez, sempre foi e terá de ser a primeira e a última instância de defesa dos cidadãos. Por isso, se até mesmo os juízes se deixarem levar pela síndrome da ribalta, adquirindo gosto pela exposição à mídia, ou se se tornarem reféns da síndrome da impunidade, admitindo que os desvios do bom caminho e os excessos são o único remédio para a cura desse mal, estaríamos ingressando num clima de relativismo jurídico em que tudo seria permitido e justificado, destruindo-se insidiosamente as garantias constitucionais, sem as quais não há Estado de Direito.

Acresça-se que, quando as instâncias judiciárias superiores anulam processos instruídos por meio de desvios e excessos, resta inútil todo o dispêndio de energia e custos suportados pela sociedade e de sacrifícios e constrangimentos desnecessários impostos aos cidadãos a eles submetidos.

Como teve oportunidade de dizer o ministro Sepúlveda Pertence ao julgar o habeas-corpus 78.708/99, se o exercício dos direitos constitucionais prejudica a eficácia de um sistema de execução da lei, então há algo de errado com esse sistema.

Aqueles, como nós, que são herdeiros de um arcabouço jurídico-institucional construído durante muitos séculos, à custa de enormes sacrifícios, e que gozam de um padrão de liberdades civis nunca antes alcançado, não se podem dar ao luxo de permitir, por ação ou omissão, o seu enfraquecimento e até mesmo a sua destruição.

A sociedade não se pode deixar engambelar pelo falso dilema de que ou se fecham os olhos para os excessos e violações ou se perpetua a impunidade.

A impunidade não decorre da falta de excessos ou da falta de violação de direitos constitucionais, mas de falhas que nada têm que ver com o respeito ao devido processo legal e ao comedimento na apuração e repressão às práticas delituosas.

Posta diante de situações de desrespeito e violações, a sociedade não pode agir como o personagem de Bertolt Brecht que, por não se identificar com os comunistas, os operários, os sindicalistas e os padres, não se importou quando os nazistas os levaram e, só quando vieram buscá-lo, descobriu que era tarde demais para reagir.

As autoridades, por sua vez, não se devem iludir, pois a sociedade, ainda que tardiamente para alguns - que já terão sido vitimados por esses procedimentos -, mais cedo ou mais tarde rejeitará tais excessos e violações e aqueles que os praticaram, ou deixaram praticar, ainda que possam alegar a melhor das intenções, não terão como se livrar da mácula correspondente.