Título: Consolidar a Lei Fiscal
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2005, Editoriais, p. A3

Aos cinco anos, completados ontem, a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) é sem sombra de dúvida um marco histórico na definição dos deveres do poder público com a sociedade - no aspecto crucial dos padrões de uso do dinheiro do contribuinte. Já se tornou lugar-comum dizer que há um Brasil antes e outro depois do advento da Lei Fiscal. É verdade, mas não toda a verdade. De um lado, porque a LRF é uma obra inacabada e, nessa medida, continuam insuficientes as salvaguardas nela previstas para reduzir ao mínimo a sua burla. De outro lado, e correlatamente, porque a lentidão, se não a leniência do processo de apuração e punição das eventuais transgressões, representa um incentivo aos governantes irresponsáveis. E de outro lado, ainda, porque o governo federal tem uma atitude ambígua diante dessa lei que, apenas cinco anos atrás, o PT tentou barrar no Congresso e em seguida na Justiça. Começando por esse último ponto, o fato de o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o presidente Lula reiterarem a sua adesão aos princípios da responsabilidade fiscal - como a exigência de prévia inclusão no orçamento de recursos específicos para qualquer modalidade de despesa e a limitação dos gastos com pessoal e do endividamento de Estados e municípios - não impediu, no último dia de 2004, a edição da MP 237, de efeito retroativo entre outras irregularidades, para garantir a impunidade da prefeita paulistana Marta Suplicy. Ela havia contratado empréstimo depois de ultrapassar o limite de endividamento do Município. O especialista José Roberto Afonso, um dos criadores da LRF, ao lado do ex-ministro e atual secretário de Planejamento de São Paulo, Martus Tavares, e do economista Guilherme Dias, teme que a MP possa virar um "paradigma" - sobretudo, acrescente-se, em um hipotético segundo governo Lula.

Outros claros sinais de que todo cuidado é pouco para prevenir o risco de progressivo debilitamento da Lei Fiscal, pela não punição dos seus fraudadores, estão em duas reportagens publicadas ontem neste jornal. Numa se lê que, embora flagrados pelos tribunais de contas (TCs) por terem violado de até nove maneiras a LRF, nenhum dos prefeitos e vereadores envolvidos ressarciu os cofres públicos, ou foi para a cadeia, como determina a lei. A outra matéria chama a atenção para um problema quem sabe ainda mais intrincado: a disparidade de critérios pelos quais os TCs cotejam os atos das autoridades com as provisões do texto legal. Decerto por razões políticas, elas tendem a ser interpretadas em benefício dos que, de outro modo, teriam de ser considerados transgressores. Treze ex-governadores, por exemplo, deixaram para os seguintes restos a pagar, sem o respectivo dinheiro em caixa: nenhum foi processado.

Em nível municipal, a irregularidade começará a ser avaliada este ano. No caso da ex-prefeita Marta, que deixou a descoberto R$ 580 milhões em restos a pagar, uma avaliação justa poderá levá-la a passar 1 ano e 4 meses na prisão. Mas, em geral, a chance de castigo só será maior que a da impunidade quando a maioria governista desengavetar o projeto do Conselho de Gestão Fiscal, encaminhado ao Congresso no fim do governo anterior. O órgão deverá padronizar a contabilidade governamental em todos os níveis e examinar, por uma única ótica, os relatórios fiscais do Poder Executivo. Também já é tempo de fixar um teto para o endividamento da União - outro projeto parado. Mas, se ainda são "imensas as pressões pelo aumento leviano do gasto público", nas palavras do deputado tucano Eduardo Paes, do Rio de Janeiro, os ganhos trazidos pela LRF superam de longe o que nela falta aprimorar.

Em artigo domingo no Estado, o ex-presidente Fernando Henrique, ao reconstituir a jornada de 12 anos até a adoção da Lei Fiscal e lembrar a esbórnia financeira que a tornou imperativa, destacou a pregação para que a responsabilidade fiscal "passasse a ser encarada como parte do processo democrático, compromisso essencial com a transparência e a governabilidade". Apesar dos percalços e perigos, a pregação teve êxito. Consolida-se "uma nova cultura político-administrativa, onde os governantes têm, cada vez mais, de assumir comportamentos de responsabilidade em relação aos recursos que administram", constata o ex-ministro Martus Tavares. "Cada governo é passageiro, o contribuinte é permanente."