Título: Agora, panos quentes
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Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2005, Editoriais, p. A3

Nem bem dissipara-se a fumaça levantada pela última crise entre a Argentina e o Brasil, tratam as autoridades dos dois países de reduzir o incidente a uma dimensão que não resulte em inaceitáveis prejuízos mútuos. De Washington, o embaixador argentino José Octávio Bordón esclarece que, no encontro do chanceler Rafael Bielsa com outros embaixadores, ocorrido em sua residência, não se tratou unicamente das relações com o Brasil. E, quando se discutiu esse tópico, foram expostas as divergências que existem sobre questões comerciais e de investimentos e, sobretudo, de política externa, mas ficou claro que a intenção do presidente Néstor Kirchner "é trabalhar mais com o Brasil e não optar pela ruptura". Em Brasília, o assessor para Assuntos Internacionais, Marco Aurélio Garcia, também fez farto uso de compressas mornas: "Se seguirmos a lógica de esquentar o ambiente, vamos chegar a maus resultados. Aos bons resultados vamos chegar se tivermos paciência e inteligência para entendermos quais são os problemas e para oferecer tratamentos de longo prazo." Chegou a essa conclusão depois que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva reuniu no Palácio do Planalto assessores diretos e diplomatas, para analisar a crise.

Nesse contexto, entram as declarações feitas em Paris pelo chanceler Celso Amorim: "Será que fiz alguma coisa de errado? Posso até ter feito alguma coisa de errado, não sei, ou que tenha esquecido de fazer alguma coisa a mais do que deveria ter feito." A dúvida, como se sabe, é o primeiro passo para o esclarecimento e a iluminação, mas o impulso inicial demonstrado pelo ministro esmoreceu na autojustificação e no simplismo de uma eventual solução para a crise. "O que acho que deveríamos fazer com a Argentina é comprar mais petróleo, mais trigo deles, mais compras governamentais e investir mais na Argentina." Ora, petróleo e trigo são commodities que a Argentina, se não vender para o Brasil, vende para qualquer outro cliente. E os investimentos dependem de decisões privadas. O ministro também revelou certa impenitência ao afirmar que o Mercosul e a Comunidade Sul-Americana de Nações não são projetos excludentes - o que é verdade -, dizendo que as duas iniciativas devem caminhar juntas, mas esquecendo-se que o Mercosul está no limbo há dois anos.

Se os presidentes Lula e Kirchner consideram que o relacionamento bilateral é o ponto central de suas políticas externas e que "a aliança (o Mercosul) é estratégica", a história recente dos dois países não deveria estar sendo marcada por uma sucessão de crises. Crises, aliás, que não são aquelas características de países que estreitam seus contatos e ampliam seu comércio e por isso passam a ter um maior número de questões a resolver. Essas crises periódicas, mas constantes, evidenciam a diferença de visão que os dois países têm do processo de integração regional. Para o Brasil, desde a sua criação, o Mercosul é, antes de tudo, um projeto político, destinado a aprofundar as ligações entre os países da área e a projetar a unidade do bloco nos foros multilaterais. Daí o Brasil nunca ter se preocupado em equilibrar a balança comercial bilateral, durante os muitos anos em que ela favoreceu a Argentina.

A Argentina, no entanto, tem uma visão imediatista das finalidades do bloco, visto como um gerador de oportunidades comerciais. Daí a política para o Mercosul estar sendo ditada, desde o segundo governo Menem, pelo interesse de setores industriais que há muito perderam competitividade. O setor açucareiro, por exemplo, tem sido uma das principais barreiras à integração tarifária. Mas o campeão continua sendo o setor calçadista. E dentro de um mês haverá nova ofensiva, pois os produtores argentinos sustentam que os exportadores brasileiros não cumpriram um acordo que limitaria as vendas a 13 milhões de pares anuais. Os produtores brasileiros negam que tenha havido tal acordo, sendo os 13 milhões de pares apenas uma estimativa de exportação. Segundo o secretário de Indústria e Comércio da Argentina, o presidente Kirchner e o ministro da Economia Roberto Lavagna decidiram proteger a indústria local - o que significa que novas barreiras serão levantadas, a despeito dos tratados que liberalizaram o comércio regional.

A todas essas ofensivas o Brasil tem feito vistas grossas. E isso tem selado o destino do Mercosul: de núcleo de um processo de integração política e econômica, tornou-se palco de disputas sobre calçados, geladeiras e televisores.