Título: Além da briga
Autor: Além da briga
Fonte: O Estado de São Paulo, 05/05/2005, economia, p. B2

Quando os interesses são grandes, é preciso mais do que boa briga para acabar com tudo.

No ano passado, o Brasil exportou US$ 7,4 bilhões para a Argentina, 37% a mais do que os US$ 5,4 bilhões exportados para a tão falada China. Nos primeiros três meses do ano passado, as exportações brasileiras para a Argentina correspondiam a 7,7% do total. No mesmo período deste ano, já estão nos 8,3%.

Mas o superávit comercial (exportações menos importações) do Brasil em relação à Argentina está aumentando. Foi de US$ 355 milhões nos primeiros três meses de 2004 e, em igual período deste ano, já está nos US$ 600 milhões.

Quando diz que o Brasil precisa importar mais petróleo e trigo da Argentina, o chanceler Celso Amorim não consola os argentinos. Ao contrário, pode chateá-los ainda mais. Petróleo e trigo são commodities negociadas nas bolsas internacionais. Se não vender para o Brasil, a Argentina pode vender petróleo e trigo para qualquer outro interessado. É evidente que os argentinos não estão reclamando de um superávit comercial brasileiro. Estão reclamando porque querem comprar menos manufaturados do Brasil e exportar mais manufaturados para o Brasil.

E já resvalamos para as assimetrias. Os argentinos esperneiam por igualdadade de condições. Pensam mais ou menos assim: "Os brasileiros têm um mercado maior e nós, um bem menor; atraem indústrias com créditos de impostos e outros benefícios (guerra fiscal), e nós não temos isso; os brasileiros têm BNDES, que distribui R$ 60 bilhões por ano em financiamentos, e nós não temos. Não é possível uma integração sem um mínimo de simetria."

A choradeira começa errada porque eles só vêem o deles. Se fossem sinceros, reivindicariam simetria também para Uruguai e Paraguai, o que implicaria generosidade deles também para com os manos pobres do Mercosul.

A falta de escala de produção é balela. Têm à disposição todo o mercado brasileiro mais o uruguaio e o paraguaio, em condições iguais às do Brasil, pois pertencem à mesma união aduaneira. É verdade que parte da indústria brasileira tirou proveito de benefícios fiscais. Mas o real problema não é que, nessa matéria, a Argentina jogue limpo e o Brasil jogue sujo. O problema é que nem oferecendo benefícios fiscais eles têm conseguido atrair investimentos externos. E, cá entre nós, ninguém proibiu os argentinos de terem seu próprio BNDES. Se eles não o têm é porque não o criaram.

Eles se ressentem do que chamam de invasão de produtos manufaturados do Brasil, mas a indústria deles não tem competitividade. Se não importarem do Brasil acabarão importando do México, China ou Coréia. A proposta de imposição de salvaguardas que o ministro da Economia Roberto Lavagna encaminhou em setembro ao governo brasileiro é inaceitável, pois impõe barreiras (automáticas) ao fluxo de mercadorias, numa área geográfica que se supõe ser de livre comércio. Pede, também, que o governo Lula exija que os investimentos estrangeiros no Brasil sejam estendidos à Argentina e nisso não leva em conta que Uruguai e Paraguai também gostariam de ter sua indústria.

Ao contrário do que afirma o chanceler Celso Amorim, há sim uma crise entre Argentina e Brasil. Ela não foi criada pela imprensa. Parece, em parte, relacionada com a tentativa de produzir efeito sobre a platéia, tendo em vista as eleições de outubro. De todo modo, com mil razões, os argentinos refugam a imposição de uma política externa Sul-Sul engendrada pelo Itamaraty e a pretensão de liderança do Brasil. Ou um país lidera naturalmente e, nesse caso, não tem de impor sua liderança; ou lidera porque tem condições de resolver problemas, e isso implica desembolsar recursos.

Maior do que a crise, são os interesses. Nem Argentina nem Brasil podem jogar fora o proveito que tiram de suas relações mútuas.