Título: A GM e a Ford rebaixadas
Autor: Celso Ming
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2005, Economia, p. B2

- O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos e o que é bom para os Estados Unidos é bom para a General Motors. Essa frase foi dita em 1952 pelo secretário da Defesa do presidente Dwight D. Eisenhower e ex-presidente da General Motors Charles E. Wilson. Ficou famosa, foi repetida e glosada em vários sentidos. Aqui passou por uma metamorfose, com "Brasil" no lugar de "General Motors" e serviu para muitos fins, desde criticar o nacionalismo exacerbado até malhar entreguistas de vários matizes.

Ontem, as dívidas da General Motors e da Ford foram rebaixadas por uma das mais importantes agências de classificação de risco, a Standard & Poors, da condição de grau de investimento (investment grade) para grau especulativo (speculative grade), que o jargão do mercado chama de grau de refugo (junk grade). Se a simetria e a identidade de interesses entre GM e os Estados Unidos continuam as mesmas, os Estados Unidos estão doentes.

Se deixa de ter grau de investimento, um título não pode mais figurar na carteira de investidores institucionais (fundos de pensão, fundos de investimento e seguradoras), que exigem absoluta segurança na aplicação de reservas. Quando considerados grau de especulação, os títulos oferecem risco de não serem honrados. O rebaixamento indica que GM e Ford terão de pagar mais caro para captar novos recursos financeiros.

No dia 27 de abril, esta coluna tratou do impacto desse rebaixamento tanto sobre a dívida dos países emergentes quanto sobre os juros de longo prazo. A isso, basta acrescentar que à dívida da GM (de US$ 291,8 bilhões) soma-se a da Ford (US$ 161,3 bilhões). Não será em semanas que os investidores institucionais conseguirão achar títulos de boa qualidade para substituir quase meio trilhão de dólares em títulos agora rebaixados.

Outro aspecto a considerar tem a ver com as novas trombadas que atingem as velhas indústrias americanas e européias. A General Motors apresentou há duas semanas prejuízo de US$ 1,1 bilhão em seu balanço do primeiro trimestre. É mais comum buscar explicações para esse desequilíbrio em erros estratégicos de gestão, na inadequação do atual mix de produtos e nas transformações do mercado americano de veículos. Mas há um drama talvez mais sério do que esse.

Como lembra o sócio-diretor da Trevisan Consultoria, Richard Dubois, a hemorragia na GM é acentuada pelos custos de cobertura de planos de saúde dos seus 430 mil funcionários e aposentados (mais dependentes), que atingirão US$ 5,6 bilhões em 2005, o que pode levar embora o lucro do ano todo.

São direitos conquistados pelos trabalhadores nos últimos 30 anos, quando tudo ia bem. Os custos de tratamento de saúde aumentaram substancialmente, os aposentados estão vivendo cada vez mais e essa nova situação apanhou as empresas quando estavam compromissadas com os sindicatos até o pescoço. A Standard & Poors avalia que, ao final de 2004, havia um déficit atuarial de US$ 61 bilhões apenas para dar cobertura futura a despesas com saúde. Ao final de 2003, esse déficit era de US$ 57 bilhões, o que dá uma idéia da escalada.

Esse problema atinge grande número de empresas consideradas "maduras" e se estende por bom número de setores, como metalurgia (especialmente a do ferro), companhias aéreas, indústrias de alimentos, energia elétrica e, naturalmente, as montadoras.

Para enfrentar essa nova situação, que alcança também os planos de aposentadoria e pensão, as empresas tentam vários expedientes: maior utilização da automação e da Tecnologia de Informação; terceirização e emprego temporário, que dispensam contratação definitiva de pessoal; renegociação com os sindicatos; e, cada vez mais, transferência de unidades inteiras de fabricação e montagem para países asiáticos (em especial para a China) e países emergentes, onde essas encrencas não existem ou têm pouco peso na estrutura de custos de produção.

Enfim, em algum grau, o mal de que padecem GM e Ford é fator que vai definindo a migração da manufatura de transformação para outros cantos do mundo. O impacto dessa mudança não parece suficientemente percebido pelos analistas. Para o Brasil, pode ser boa oportunidade para atrair investimentos, se prevalecer um mínimo de bom senso no governo, no Congresso e nos sindicatos.