Título: Responsabilidade fiscal do eleitor
Autor: Rogério L. F. Werneck
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2005, Economia, p. B2

A Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) acaba de completar cinco anos. Quem se lembra com um mínimo de clareza do descalabro das finanças públicas nas últimas décadas sabe que cinco anos não é pouco. Apesar de todo o ceticismo que cercou a promessa de que a legislação aprovada em 2000 daria lugar a novo regime fiscal, a LRF vem resistindo de forma surpreendente a pressões políticas de toda ordem e assegurando um padrão de gestão das contas públicas que há poucos anos parecia inatingível. Em meio ao calor das comemorações e das recriminações ensejadas pelo aniversário da LRF, é reconfortante verificar que agora querem partilhar seu sucesso tanto o governo como a oposição. Evidência contundente de quanto evoluiu o País desde 2000. Nas discussões acerca da LRF há um aspecto que vem recebendo menos atenção do que merece. A lei costuma ser vista como instrumento que exige dos governantes, nas três esferas da Federação, obediência a princípios elementares de responsabilidade fiscal. O que não se percebe com a devida clareza é que a LRF só continuará tendo sucesso em prazo mais longo se puder também funcionar como sistema de incentivos que possa incutir responsabilidade fiscal nos eleitores, e não só nos governantes.

Em última análise, a LRF só será sustentável se estiver solidamente apoiada na responsabilidade fiscal do eleitor. Há nessa constatação bem mais do que a idéia trivial de que, numa democracia, as leis emanam do povo. Basta notar que a LRF seria submetida a tensões fatais se os eleitores sistematicamente escolhessem, para cargos executivos dos três níveis de governo, candidatos pouco afeitos à responsabilidade fiscal. A aplicação dos dispositivos coercitivos previstos na LRF acabaria sucumbindo a pressões políticas incontornáveis. Para que as pressões não cheguem ao ponto de ruptura é fundamental que os próprios eleitores desenvolvam preocupação com responsabilidade fiscal no momento de exercer o direito de voto.

A própria LRF propicia bons incentivos ao aguçamento dessa preocupação no eleitor. É importante que tais incentivos sejam preservados e, na medida do possível, reforçados. O ponto crucial é assegurar que o eleitorado tenha de arcar com as conseqüências de seu descaso pela responsabilidade fiscal. Especialmente no nível municipal, em que o vínculo entre o descaso e seus custos pode ser estabelecido com mais nitidez. Se o eleitorado elege um prefeito irresponsável, não basta que corrija a má escolha na eleição seguinte. É preciso que perceba com clareza que escolhas impensadas acabam exigindo tributos mais altos e serviços mais precários. Essa percepção é crucial para a apreciação adequada da importância da responsabilidade fiscal. Tem de ser preservada a todo custo. É fundamental que não seja obstada por afrouxamentos ad hoc das restrições fiscais a que estão submetidos os governos subnacionais.

Sem a restrição orçamentária efetivamente rígida que a LRF agora impõe a cada ente federativo, essa percepção se tornaria novamente difusa. E estaria rompido o elo essencial do sistema de incentivos capaz de assegurar a sustentabilidade da própria LRF em prazo mais longo. É mais do que sabido que operações de salvamento - como as que com tanta freqüência ocorriam no passado, quando a União se dispunha a arcar com rombos orçamentários de Estados e municípios - sancionavam a imprudência fiscal de prefeitos e governadores. O que ainda não se compreende com a mesma clareza é que tais operações também estimulavam a inconseqüência dos eleitores.

A idéia de que o município é o berço da cidadania é muito mais do que simples constatação etimológica. É especialmente verdadeira no caso da responsabilidade fiscal. Como a ação coletiva na esfera municipal assume em geral formas bem mais simples e concretas do que nas esferas estadual e federal, é no município que os eleitores podem contrapor com mais nitidez custos e benefícios da atuação do governo, e perceber com mais clareza as conseqüências da irresponsabilidade fiscal. É por isso que no novo regime fiscal, que surgiu em 2000, o município se converteu na célula básica do complexo processo de mudança de mentalidade instaurado pela LRF. Um processo que não se pode limitar aos governantes. A longo prazo, o que realmente importa é a mudança de mentalidade do eleitor.