Título: Meu caro prefeito Serra
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Sou suspeito para escrever sobre você. Nós nos conhecemos há quase 30 anos, desde 1978, quando trabalhamos juntos na campanha para o Senado do então professor Fernando Henrique Cardoso. Universitário, eu militava no movimento estudantil e você, recém-chegado do exílio, como ex-presidente da UNE, gozava da minha maior consideração. Terminada aquela épica jornada, cada um seguiu seu caminho e só voltei a encontrá-lo em 1983, quando você coordenava o plano de governo do recém-eleito governador Montoro e eu iniciava a minha carreira jornalística como comentarista de economia e política da Rádio Jovem Pan. Você era a estrela da equipe e realmente brilhou como secretário de Estado do Planejamento. Tanto isso é verdade que, logo depois, Tancredo Neves o convocou para comandar a costura de seu programa de ação na Presidência da República. Ao término da gestão Montoro, você se elegeu deputado federal, com uma imensa votação, e teria papel destacado na Assembléia Nacional Constituinte. Foi quando nossos caminhos se cruzaram novamente. Em 1987 eu era comentarista do Jornal do Meio-Dia, na TV Record, e você foi convidado a participar do programa. Trabalhamos juntos, na televisão, por seis anos consecutivos. Foi a fase áurea daquele programa, que tinha excelente audiência. Em 1988 concorremos ambos à Prefeitura de São Paulo e tivemos praticamente a mesma votação, quase 300 mil votos. Durante a campanha, eu não me envergonhava de declarar publicamente que, se não fosse candidato, certamente votaria em você. Dois anos depois, fomos eleitos deputados federais, você com a primeira e eu com a segunda maior votação do Estado de São Paulo. Nunca deixei de admirá-lo e os acirrados debates que mantínhamos, duas vezes por semana, na TV só serviram para aumentar a minha consideração, por sua inteligência, sua cultura e sua capacidade como homem público. Você viria a ser senador, ministro do Planejamento, ministro da Saúde e candidato à Presidência da República. Confesso que vibrei quando se elegeu prefeito de São Paulo. Cheguei a escrever, nesta página, que, por seu talento e obstinação, você tinha tudo para ser um dos melhores governantes que esta nossa sofrida cidade já teve. Pois bem, você montou uma excelente equipe, assumiu o governo há mais de quatro meses e agora eu lhe pergunto: cadê você? Onde está o brilhante José Serra em quem eu votei?

Ao completar os primeiro cem dias de gestão, a Folha de S.Paulo publicou uma pesquisa com os paulistanos e você aparecia como o campeão de rejeição entre os seis últimos prefeitos. Quase 40% dos cidadãos de São Paulo avaliaram a sua atuação como ruim ou péssima... Por Deus, meu amigo, o que está acontecendo com você?

Você dirá, com razão, que sua antecessora deixou a Prefeitura quebrada e que sua principal tarefa, agora, é reconstituir os cacos. Desculpe-me a ousadia, meu caro prefeito, mas, para mim, isso não serve como desculpa. Antes da Lei de Responsabilidade Fiscal era comum os novos prefeitos assumirem com as finanças arruinadas e todos eles, de um jeito ou de outro, conseguiram manter-se populares enquanto tratavam de arrumar a casa.

Você tem horror a manobras populistas e a jogadas de marketing, eu bem sei. A austeridade é um dos seus pontos fortes. Não consigo imaginá-lo, nas ruas, multando carros ou pintando paredes só para ficar bem com o público. Mas será que sobriedade e popularidade são atributos assim tão incompatíveis?

O que sabemos, pelos jornais, a respeito de sua gestão? Num dia aumenta a passagem dos ônibus. No outro avisa que vai ampliar o rodízio de autos (cuidado! Isso é extremamente impopular!). Lemos que cancelou obras já iniciadas, reformou obras já concluídas, desistiu de levar adiante projetos bem-sucedidos, deixou de pagar as dívidas já pactuadas. E notícias positivas? Não há nada de bom para anunciar?

Você dirá que ainda é muito cedo para avaliar a sua gestão. Concordo. Mas será que já não é tempo de incutir no povo um mínimo de esperança?

Juscelino também assumiu o poder num momento traumático. Não obstante isso, seu entusiasmo era tão contagiante que logo o povo compartilhou o seu sonho de alcançar as estrelas. Franklin Roosevelt chegou à Presidência dos EUA numa época de enorme desalento. Tomou medidas duras e impopulares, mas suas "conversas ao pé da lareira", pelo rádio, nas quais transmitia franqueza e otimismo, levantaram a auto-estima dos americanos e os fizeram acreditar que dias melhores haveriam de chegar. Churchill, no momento mais difícil da guerra, anunciou aos britânicos que só tinha a lhes oferecer sangue, suor e lágrimas. O povo o compreendeu, tomou-se de brios e lutou bravamente para superar o medo e a angústia. Nenhum deles era populista ou demagogo, mas todos souberam levantar as massas em respaldo de um grande projeto.

O povo não é bobo, meu caro Serra. Ele sabe discernir entre o certo e o errado. E aceita sacrifícios, desde que lhe digam o porquê. Governantes não são apenas gerentes. Cabe-lhes, além de governar com eficiência, o importante papel de dar o exemplo. E, com a força de suas convicções, despertar no povo uma tenacidade que ele próprio não acredita possuir.

Você, meu caro Serra, tem todas as condições para assumir essa liderança. Sua competência é inegável, seus secretários são excelentes. O que lhe falta para tomar as rédeas do seu destino?

Eu confio em você. Milhões de paulistanos confiam em você. Levante os faróis, sr. prefeito! É do seu brilho - e somente dele - que dependemos todos para antever o nosso futuro!