Título: Cobrança de ONGs irrita o governo
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/05/2005, Vida&, p. A17

BRASÍLIA - A decisão do governo de recusar US$ 48 milhões dos Estados Unidos para financiamento de projetos de combate ao HIV-Aids, antecipada pelo Estado no dia 28, vem provocando reações em várias frentes. Entre o governo e as ONGs - que iriam se beneficiar da verba, mas apoiaram a decisão -, surgiu um mal-estar que o coordenador do Programa Nacional de DST/Aids, Pedro Chequer, recebeu com irritação. No exterior, a recusa foi recebida com críticas de um senador republicano dos EUA e com o apoio de ativistas europeus (leia reportagem abaixo). No Congresso, o caso reavivou as discussões sobre o projeto que trata da legalização da prostituição (veja boxe à direita). Ontem, as organizações não-governamentais brasileiras que seriam contempladas com a verba afirmaram não saber que destino darão a seus projetos. "Ninguém disse nada. Se o governo vai financiar, se os trabalhos vão para a gaveta. Mas os projetos não foram feitos à toa, são todos desenhados para beneficiar milhares de pessoas", afirmou José Araújo, do GIV. Pedro Chequer irritou-se com a cobrança. "Essa foi uma decisão partilhada entre governo e ONGs. Ao decidirmos por recusar o financiamento, ficou bem claro que isso teria um preço. E acho que foi um preço razoável. Abrimos mão de recursos, mas preservamos a dignidade e a soberania deste País", completou.

A decisão brasileira foi uma reação à condição imposta pela Agência Nacional Americana para Desenvolvimento Internacional (Usaid) para a formalização dos contratos. A Usaid havia determinado que ONGs vencedoras só receberiam a verba caso se comprometessem a não atuar em campanhas pelo reconhecimento da prostituição como profissão. Tal condição não constava no edital para a seleção das ONGs. "Além de ser moralmente questionável, a condição imposta pela Usaid juridicamente também era bem duvidosa", avaliou o coordenador.

A questão foi debatida com a Comissão Nacional de Aids (Cnaids), que, por unanimidade, decidiu recusar o financiamento. No dia 28, o governo enviou à Usaid uma carta, comunicando a recusa. Até agora a Usaid não se manifestou.

Essa não foi a primeira queda-de-braço entre governo brasileiro e agência americana. A Usaid também sugeriu que ONGs brasileiras adotassem a estratégia ABC para a aids, que elege como principal forma de prevenção a abstinência sexual. Diante das pressões, a agência recuou da decisão.

MAIS RECURSOS

Chequer contou que o programa, antevendo a decisão de recusar a verba, resolveu ampliar os recursos destinados às ONGs. Há duas semanas, o programa ampliou em R$ 10 milhões a verba repassada para Estados e municípios - totalizando R$ 59 milhões. "Recursos a mais são bem-vindos", observou o coordenador. "Mas acho que o episódio chama a atenção para a necessidade de cobrar de Estados e municípios maior agilidade para a ampliação dos recursos e maior participação das duas esferas no financiamento de ações de DST/Aids", afirmou.

O episódio também ampliou a discussão sobre o reconhecimento da prostituição como profissão. "Também estamos sem saber o que vai ocorrer com nossos projetos. Mas a decisão da Cnaids foi essencial para assegurar a integridade dos princípios do programa de DST/Aids e um reconhecimento da importância das profissionais do sexo", avalia Gabriela Silva Leite, do movimento de prostitutas.

O deputado Fernando Gabeira, autor de um projeto de lei sobre o reconhecimento da prostituição como profissão, aplaudiu a decisão brasileira: "O fato de o governo comprar a briga trouxe mais argumentos para toda essa discussão."

Chequer por várias vezes se mostrou favorável à legalização da profissão de prostituta. "Elas desempenham um papel preponderante nessa área, ajudando a formular políticas de saúde. É inconcebível que sejam consideradas cidadãs de segunda classe", afirmou. Os Ministérios da Saúde e da Justiça já se manifestaram favoráveis à legalização da profissão. A atitude coesa, no entanto, não se repete no Legislativo.