Título: Cúpula América do Sul-Países Árabes
Autor: Rubens Barbosa
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Altos representantes de 34 países de duas regiões do mundo tão distantes entre si, América do Sul e o Grande Oriente Médio, estarão reunidos hoje e amanhã em Brasília. Do ponto de vista estratégico para os países desenvolvidos, elas têm importância e relevância bem diferentes. Por um lado, a América Latina, não sendo uma ameaça à segurança dos EUA e da Europa, nem representando um mercado de grande potencial, merece baixa prioridade na agenda das principais capitais do mundo desenvolvido. De outro, o Grande Oriente Médio, em razão do crônico conflito entre árabes e judeus e do significado do petróleo na vida contemporânea, mas também pela guerra do Iraque e por tudo o que ela significa em relação ao Islã e ao Ocidente, está no centro das preocupações internacionais.

É no Brasil que ocorre a primeira reunião de cúpula América do Sul-Países Árabes, em meio à conturbada situação internacional, por iniciativa do governo Lula, numa das mais delicadas e arriscadas manifestações de sua política externa proativa.

Um dos subprodutos da cúpula, mesmo antes de seu início, foi a reação negativa de nossos "hermanos" argentinos, a exemplo do que havia ocorrido com a cúpula de presidentes da América do Sul e com a da Comunidade da América do Sul. Sofrendo "da dor de já não mais ser", como na letra do famoso tango Cuesta Abajo, a Argentina, nossa parceira estratégica, mais uma vez manifestou desagrado com a crescente presença externa brasileira e ameaçou não comparecer à reunião organizada pelo Brasil.

O encontro internacional, de certa forma esvaziado pela confirmação da vinda de apenas metade dos líderes árabes e sul-americanos convidados, reveste-se de caráter pioneiro e tem a intenção declarada de buscar aproximar duas regiões de dimensões continentais do mundo em desenvolvimento.

Segundo a visão brasileira, a proposta principal da cúpula é a de promover um mecanismo de integração birregional, no âmbito da cooperação Sul-Sul, e estimular a aproximação de duas regiões com afinidades históricas que enfrentam desafios semelhantes em relação à promoção do desenvolvimento e compartilham interesses e objetivos comuns em sua atuação externa.

A iniciativa brasileira, na realidade, tem motivação variada: a busca de uma nova geografia econômica mundial, a projeção externa do Brasil como potencial regional emergente, a boa vontade árabe para eventual votação nas Nações Unidas para a ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança e, mais pragmaticamente, a busca de investimentos e da ampliação dos fluxos de comércio, atualmente estagnado em torno de 3,8% do total das exportações brasileiras.

Os países sul-americanos, onde a reunião poderá ter repercussão interna, em vista da importante presença da população árabe, esperam maior cooperação econômica e, sobretudo, abrir novos mercados, por meio de acordo de livre comércio a ser assinado com os países do Golfo.

Do lado árabe, a principal motivação para a realização do encontro, certamente, não foi nem econômica, nem comercial, mas política. Desde o início, ficou clara a intenção de aproveitar o foro birregional para obter ganhos propagandísticos, a fim de ampliar os apoios para suas lutas na região, procurando, contudo, acomodar, com flexibilidade, as previsíveis resistências dos países sul-americanos.

É difícil, assim, imaginar, como gostaria o Brasil, que a cúpula fique limitada aos temas de cooperação econômica e comercial, diversificação e expansão do comércio e dos investimentos, cooperação cultural, cooperação científico-tecnológica, coordenação em foros multilaterais e colaboração em temas de desenvolvimento sociais.

O conflito israel-palestino, a guerra no Iraque, a proliferação de armas nucleares no Oriente Médio, o terrorismo estarão muito presentes e deverão constar dos discursos, que, talvez em termos pouco diplomáticos, deverão condenar, de forma inequívoca, as políticas dos EUA e de Israel.

Israel, por seu lado, fez saber de seu desconforto com a iniciativa e com a realização da cúpula. Para tentar pôr tudo em perspectiva, depois da reunião, no fim do mês, o ministro Celso Amorim vai a Tel-Aviv tentar explicar o que se passou a seu contraparte israelense e tranqüilizar a influente comunidade judaica no Brasil.

Os EUA, embora publicamente não demonstrem preocupação maior com o encontro, tentaram participar como observadores, mas foram delicadamente rechaçados pela diplomacia brasileira. Em sua rápida passagem pelo Brasil, Condoleezza Rice deve ter feito referência à reunião e, não sem fina ironia, deve ter pedido ao Brasil que apóie os esforços do governo Bush em espalhar e fortalecer a democracia nos países árabes.

Como seria previsível num encontro dessa natureza e com esses atores, tendo como pano de fundo a situação internacional, no documento final os países devem condenar o unilateralismo, rejeitar o uso da força militar para resolver problemas internacionais e exigir maior participação da comunidade internacional na reconstrução do Iraque e na luta contra o terrorismo

Não é difícil imaginar a dificuldade para extrair da cúpula resultados concretos que sejam satisfatórios para a América do Sul, apesar das manifestações retóricas positivas. Maiores investimentos e incremento nas relações comerciais são fáceis de prometer, mas difíceis de concretizar, pelo desconhecimento recíproco entre as regiões, que - espera-se - o encontro poderá ajudar a remediar.

Do ponto de vista do Brasil, se as mensagens inseridas na declaração presidencial, não muito diferentes das que estão incluídas em resoluções das Nações Unidas, forem absorvidas sem maiores problemas, a cúpula terá sido um grande êxito.