Título: Excesso de exibicionismo
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Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2005, Editoriais, p. A3

A mais importante iniciativa diplomática do governo Lula deste ano - a Reunião de Cúpula da América do Sul e dos Países Árabes - inicia-se com as marcantes ausências de seis dos principais líderes árabes e de quatro presidentes sul-americanos. O governo brasileiro pretendeu fazer desse encontro uma demonstração de liderança regional e de influência no mundo árabe, peça-chave para a formação de um hipotético eixo Sul-Sul que mudaria a geografia econômica do mundo e moderaria os efeitos da unipolaridade global exercida pelos Estados Unidos. Logo no início dos preparativos da cúpula, que remontam a 2003, o Itamaraty trombou com peculiaridades da intrincada política do Oriente Médio. As visitas que o presidente Lula e o chanceler Celso Amorim fizeram aos países da região provocaram desconforto em Israel, nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, que viram na iniciativa brasileira um fator potencialmente perturbador para as negociações de paz em curso no Oriente Médio. Para vencer as suspeitas de que estava preparando uma grande conferência de solidariedade aos países da região - e para evitar que esse fosse o efeito não desejado da cúpula -, o Itamaraty passou a explicitar, publicamente, a natureza econômica e comercial do encontro, pretendendo tirar-lhe qualquer conotação política.

E, com isso, desistiram de comparecer pessoalmente os líderes da Arábia Saudita, Egito, Jordânia, Líbia, Marrocos e Síria. Afinal, para assinar acordos-quadro e protocolos de intenção na área comercial, bastavam ministros e, em alguns casos, vice-ministros. Da América do Sul não virão os presidentes do Equador, da Bolívia, do Suriname e da Colômbia, que alegam problemas internos para justificar suas ausências.

A Reunião de Cúpula da América do Sul e dos Países Árabes ficou, dessa forma, esvaziada. Será politicamente irrelevante - informa-se que temas candentes como a democracia e o terrorismo, como é óbvio, serão tratados de maneira asséptica no comunicado final - e do ponto de vista comercial não produzirá muito mais do que aquilo que 190 empresários árabes, 188 sul-americanos e 448 brasileiros puderem fazer em dois dias de contato formal. Os acordos de redução tarifária entre o Mercosul, o Egito e o Marrocos, ainda em discussão, só serão assinados em julho, provavelmente, assim como o acordo-quadro entre o Mercosul e os países do Conselho de Cooperação do Golfo.

É claro que sempre haverá algo de positivo numa reunião de 34 países, representando duas regiões diferentes do globo, economicamente complementares. Mas é inegável que as expectativas originais do Itamaraty, ao convocar o encontro, foram superestimadas, como tornou-se hábito no governo Lula.

O Itamaraty, sob o governo petista, abandonou a prudente linha de afirmação dos interesses nacionais na região e no mundo, seguida no governo Fernando Henrique, e passou a pautar a política externa por um "excesso de exibicionismo", como bem definiu o embaixador Sebastião Rego Barros.

De fato, há na atual política externa uma dupla inconsistência. Do ponto de vista conceitual, ela padece da fraqueza de tentar reproduzir um terceiro-mundismo que, se já era anacrônico na presidência Geisel, há um quarto de século, no mundo globalizado que resultou da vitória do capitalismo e da democracia sobre o socialismo real e outros socialismos é simplesmente despropositado. Trocando o pragmatismo que rege as relações políticas e comerciais de hoje por uma ideologia que mal esconde o viés antiamericano, a política externa deixou de ser um instrumento de inserção do Brasil no mundo desenvolvido e passou a ser um fator de isolamento.

O mesmo resultado produzem as manifestações extemporâneas da liderança que o Itamaraty julga que o Brasil exerce em seu entorno e mais além. "Para liderar", ensina o embaixador Marcos Azambuja em matéria publicada domingo pelo Estado, "é preciso ter um conjunto de valores, capacidade de investimento, informações estratégicas, tecnologia diferenciada e capacidade de agir, que o Brasil não tem. Desconfio dessas afirmações de liderança, sobretudo porque não vejo instrumentos reais de poder que as justifiquem."

Na última década, o Brasil ampliou sua área de influência, usando para isso o exemplo de comedimento de um país emergente que compreendia suas responsabilidades internacionais e não ia além de suas reais capacidades. A extravagância da atual política externa está pondo esses ganhos a perder.