Título: O passeio no Volga 56
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/05/2005, Editoriais, p. A3

Quando chegou a Moscou, no domingo, para estar entre os 50 líderes mundiais que participariam ontem do 60.º aniversário do fim da 2.ª Guerra Mundial na Europa, o presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, foi convidado pelo anfitrião Vladimir Putin a dirigir um reluzente Volga 1956. Tratava-se, é claro, de uma encenação para ressaltar a boa vizinhança entre Bush e aquele cuja alma ele teria vislumbrado, segundo disse, depois de "olhá-lo nos olhos", ao se conhecerem em 2001.

Era preciso dissipar as tensões - especialmente inoportunas, nas circunstâncias - advindas do roteiro da viagem de Bush e das suas declarações que o Kremlin só poderia receber com desagrado, a ponto de merecer de Putin uma inédita resposta atravessada. Antes de chegar à Rússia, Bush esteve na Letônia, um dos três países bálticos (com a Estônia e a Lituânia) anexados em 1945 pela URSS, da qual só se libertariam com o seu desmoronamento - "a maior tragédia geopolítica do século 20", declarou Putin há duas semanas.

Bush criticou o presidente Roosevelt por ter concordado em reduzir quase toda a Europa Oriental a satélite soviético, contra a ferrenha oposição do britânico Churchill, na Conferência de Yalta, com Stalin, em fevereiro daquele ano. O americano fez mais. Advertiu Putin a não interferir nas novas democracias em construção nas fronteiras da Rússia e terminou o seu giro em Tbilisi, na Geórgia, para marcar posição em defesa da Revolução da Rosa de 2003 contra o controle do país pelo Kremlin.

Putin deu-lhe o troco numa entrevista à rede CBS, levada ao ar domingo, lembrando que a primeira eleição de Bush foi decidida na Justiça. Nem por isso, completou com rudeza, "vamos enfiar nossos narizes no seu sistema democrático". Naturalmente, Bush tem razão em tudo que disse sobre o passado soviético e o autoritarismo da Rússia atual. O problema é que Washington só começou a criticar sem eufemismos os atos de Putin depois que ele atentou contra o direito de propriedade, ao reestatizar o colosso petrolífero Yukos, do oligarca Mikhail Khodorkovsky, o homem mais rico do país, preso por alegadas fraudes fiscais.

As ações de Putin contra a liberdade de imprensa, por exemplo, não mereceram críticas semelhantes. Pouco depois da segunda posse de Bush - quando ele afirmou que "os interesses vitais da América e as nossas convicções mais profundas são agora unos" -, a secretária de Estado Condoleezza Rice teria repreendido - segundo informação extra-oficial do seu porta-voz - o chanceler Sergei Lavrov pelos retrocessos da democracia russa. Semanas mais tarde, quando Bush e Putin se encontraram na Eslováquia, os russos espalharam que o titular do Kremlin fizera o mesmo em relação aos EUA.

Agora, deixando claro que tinha zerado o jogo com a entrevista à TV em seguida à tréplica de Bush, Putin esmerou-se em tratá-lo como amigo próximo - e colocando-o ao seu lado para que assistisse da primeira fila ao impressionante desfile militar, reminiscente da era soviética, pela passagem do que chamou em discurso "dia sagrado". De fato, nunca um povo sofreu tanto em um conflito armado. Dos 55 milhões de mortos da guerra que engolfou 60 países, 27 milhões viviam na URSS.

Mas quem teve a idéia de colocar um sorridente Bush ao volante de um carro de Putin, modelo 1956, talvez não tenha lembrado o que aquele ano representou nas relações entre Washington e Moscou. Primeiro, a CIA vazou o explosivo relatório secreto do então primeiro-ministro Nikita Kruchev sobre os crimes de Stalin. Depois, a URSS invadiu a Hungria rebelada. Por fim, de comum acordo com os soviéticos, os EUA exigiram a retirada anglo-franco-israelense do Egito, depois da nacionalização do Canal de Suez por Nasser.

Passado meio século, Estados Unidos e Rússia estão fadados a ciclos de cooperação e tensões. Washington precisa de Moscou no campo da segurança. Por exemplo, para pressionar a Coréia do Norte a voltar às conversações multilaterais sobre a questão nuclear. Anteontem, a Agência Internacional de Energia Atômica sugeriu que Pyongyang tem plutônio para 5 ou 6 bombas - se é que já não as produziu. E Moscou precisa de Washington para se projetar como interlocutor global. Será em São Petersburgo, por sinal, a próxima reunião do G-8, o antigo grupo das sete maiores economias mundiais, a que os americanos filiaram os russos, depois da queda do comunismo.