Título: Política social agressiva, com receitas do petróleo, é o trunfo de Chávez
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2005, Internacional, p. A16

A favelada Leni Rondón, 25 anos, moradora da comunidade de Granoven-Catia, nos arredores de Caracas, se diz adepta do socialismo bolivariano do presidente Hugo Chávez, embora não domine todos os conceitos revolucionários tão caros ao líder. O que ela acha do capitalismo? "Não sei, o que é isso?", pergunta. Próximo a Leni vive a estudante de medicina Gina Bernoterán, outra chavista entusiasmada. "É algo espetacular, superbom, nenhum presidente fez o que ele está fazendo", ela diz, acrescentando que Chávez está trazendo para a Venezuela apenas o que há de bom em Cuba, como o modelo de saúde pública. "Não creio que ele vá transformar a Venezuela em Cuba. Eu não gostaria - meu irmão foi lá uma vez e me disse que tem dia na semana para comer carne", ressalva.

Ambas as moças estão visitando o ambulatório popular onde atende a médica cubana Inés Durán, 37 anos. O consultório é uma casa de favela como qualquer outra, e muito parecida com as construções de alvenaria e tijolo não revestido dos morros cariocas ou das periferias das grandes cidades brasileiras. A médica trabalha no andar de baixo e mora no de cima. Com um sorriso esfuziante, a negra Inés responde que veio há dois anos de Cuba para a Venezuela, em um programa de trabalho voluntário, e que é solteira. "Pode botar no seu jornal que estou disponível", arremata, com uma gargalhada.

"A doutora virou minha amiga", explica Leni. A idéia é esta mesma. A interação entre Leni, Gina e Inés é um retrato microscópico de um processo que já se irradiou pela maior parte das favelas e comunidades carentes onde vivem os 14 milhões de pobres venezuelanos, mais da metade da população de 26 milhões. Hoje, são 20 mil médicos cubanos em trabalho voluntário, pontas de lança de um programa maciço de investimentos em saúde e educação em que Chávez está enterrando bilhões e bilhões de dólares que saem diretamente do caixa da PDVSA, a estatal de petróleo, turbinado pelo barril a US$ 50. É esta política social vibrante e poderosa que, junto com o seu carisma, explica a atual taxa de aprovação de 70% de Chávez.

Batizadas de "missões", no sentido militar do termo, as iniciativas sociais de Chávez nascem de ímpetos voluntaristas do presidente, ignoram restrições fiscais, contam com a energia eletrizante de dezenas de milhares de venezuelanos devotados à "revolução bolivariana", e partem do pressuposto de que nunca mais haverá uma baixa no preço do petróleo. Embrulhada junto com a quixotesca estratégia internacional de confrontação com os Estados Unidos, com as maquinações antidemocráticas da política interna, com a compra de armas e a montagem de uma força militar paralela, e com as medidas econômicas regressivas (ou ameaças de medidas) que aumentam a atrofia do débil setor não-petrolífero da Venezuela, a política social de Chávez destaca-se por ser eficaz e politicamente inatacável.

"As missões são programas sociais positivos, e evidentemente são bem recebidos pela população pobre", diz Jorge Sucre, presidente do partido Projeto Venezuela, e um dos vários líderes da oposição a Chávez. Ele imediatamente ressalva que as missões não vão resolver a catastrófica situação social venezuelana, o que só acontecerá com crescimento sustentável baseado no investimento privado e no respeito às instituições democráticas - tudo o que as recentes juras de morte ao capitalismo por parte do presidente e a sua insaciável busca de mais controle econômico, político e social não contribuirão para fazer acontecer.

OPOSIÇÃO

Sucre, um afável e refinado advogado de 60 anos, reconhece que "a oposição está vivendo o seu momento mais difícil desde que Chávez chegou ao poder". Ele atribui este fato à falta de coordenação das multifacetadas forças oposicionistas e ao sucesso do presidente em empastelar a autonomia dos outros poderes, um processo de arreganhos autoritários e artimanhas políticas que Sucre descreve meticulosamente em seu escritório de dimensões modestas e bom gosto europeu.

O fato, porém, é que se a Venezuela deixa a desejar como democracia, seria igualmente inexato classificá-la de ditadura. Chávez é dura e regularmente criticado nos principais jornais e canais de TV do país - mesmo com suas medidas para abafar a liberdade de imprensa - e a oposição compete legalmente pelo poder. A tentativa de golpe contra Chávez, apoiada por muitas das lideranças antichavistas e pelos Estados Unidos em 2002, enfraquece o argumento dos que combatem as tendências autoritárias do presidente.

O drama dos adversários de Chávez é que, com a sua ousada aposta na política social, usando as receitas do petróleo em alta, o presidente está conseguindo cristalizar a imagem de 'revolucionário' que destronou uma elite egoísta e corrupta, e derrotou o modelo neoliberal que estaria na origem da negligência histórica do Estado venezuelano em relação aos pobres. O êxito social soma-se aos tentáculos que a inclinação autoritária de Chávez conseguiu estender no Judiciário, na PDVSA, nas Forças Armadas, e é catalisado pelo "fervor revolucionário" de incontáveis militantes bolivarianos da Venezuela e também estrangeiros.

O resultado é que, com a oposição abatida, Chávez está no auge do seu poder, e com uma energia incontrolável vem radicalizando o seu discurso e - numa escala abaixo - as suas ações.

A observação, tantas vezes repetida, de que os indicadores sociais da Venezuela hoje são efetivamente piores do que os de 1999, quando o presidente chegou ao poder, não parece calar fundo nas massas populares. Devastada por crises e oscilações que fazem o típico país latino-americano assemelhar-se a uma Suíça ao contrário, em termos de estabilidade, a decrepitude da economia venezuelana é evidente no caos urbano de Caracas, onde lixo, favelas, veículos estropiados e camelôs são onipresentes, e estes últimos invadem até mesmo as escadas, passagens subterrâneas e pátios de pilotis do Centro Simón Bolívar, um conjunto de edifícios em estado terminal de conservação, que abriga vários ministérios.

Diante de tanta instabilidade, que remonta ao período anterior à chegada de Chávez ao poder, poucos se dão ao exercício de comparar indicadores socioeconômicos, mas o impacto de algo como a Clínica Popular Gramoven no meio de um complexo de favelas é grande. Inaugurada em janeiro, e levantada em oito meses, a clínica é uma ampla construção de dois andares, bem acabada, com ar-condicionado, limpa, tripulada por médicos motivados, e repleta de equipamentos novos de alta tecnologia, sejam os aparelhos cardiológicos, seja a tela plana de TV que distrai a população favelada enquanto aguarda o momento de ser atendida.

O principal financiador da construção da clínica foi a PDVSA, que tem um representante seu trabalhando diretamente no local, como explica a dra. Maria Elena Coa, pós-graduada em epidemiologia, e diretora da instituição. "Antes disso aqui, eu chegava às 7 da manhã a um hospital público, só era atendida de noite, e tinha de levar tudo, esparadrapo, gaze, remédio, até seringa", testemunha Neilivia Miranda, empregada doméstica de 39 anos.

A clínica é o centro de referência para 40 ambulatórios populares, como o da cubana Inés, que agora começam a ser construídos em módulos octgonais de dois andares, mas inicialmente eram acomodados em casas já existentes das favelas. A política de saúde articula o atendimento básico mais simples nos ambulatórios - a chamada Missión Barrio (favela) Adentro - com as clínicas para situações intermediárias de gravidade e "hospitais populares" para tratamento de ponta. Além da saúde, Chávez lançou "missões" de alfabetização, escolarização infantil e acesso à universidade. Com estas iniciativas, está dominando os corações e mentes da maioria dos venezuelanos.