Título: Natureza brasileira ganha um atlas
Autor: Herton Escobar
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2005, Vida &, p. A22

Passados quase cinco anos desde a criação do Sistema Nacional de Unidades de Conservação, mais conhecido como Snuc, o Brasil ainda está longe de colocar seu mosaico de áreas protegidas para funcionar. À primeira vista, os números até que são animadores. Desde a criação do Parque Nacional de Itatiaia, em 1937, mais de 517 mil quilômetros quadrados do território brasileiro já foram agraciados com status de proteção federal - uma área maior do que a Espanha, ou quase do tamanho da Bahia. Só nos últimos quatro anos, foram acrescentados cerca de 112 mil quilômetros quadrados, segundo dados do Atlas de Conservação da Natureza Brasileira (ed. Metalivros, 335 págs., R$ 160) , que vai ser lançado em Brasília depois de amanhã. Dentro desse cenário não faltam paisagens exuberantes, das florestas da Amazônia aos pampas do Rio Grande do Sul. Mas falta dinheiro, falta infra-estrutura, faltam funcionários e falta implementação. A maioria das unidades ainda existe apenas no papel e nas fotografias.

A lei do Snuc, publicada em julho de 2000, prevê a apresentação, a cada dois anos, de um relatório de avaliação global da situação das unidades de conservação (UCs) federais do País. Para isso, em primeiro lugar, seria necessário um cadastramento de todas essas unidades. Mas nem isso foi feito. O número de unidades e a área total ocupada por elas varia de acordo com a publicação. Muitas áreas não têm plano de manejo nem equipe permanente no local. E várias delas estão sobrepostas a terras indígenas, o que as coloca numa espécie de limbo legal entre existir e não existir. "Não há como fazer um diagnóstico preciso das unidades do Brasil, porque esse diagnóstico não existe. É algo que estamos tentando fazer agora", diz o coordenador do Programa de Áreas Protegidas da WWF Brasil, Cláudio Maretti.

Segundo o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente, João Paulo Capobianco, a meta é concluir o cadastramento de UCs ainda no primeiro semestre deste ano. "Há uma dificuldade tremenda em reunir essas informações, porque o sistema não estava adequado para isso", reconhece. Junto com o cadastro deverá ser apresentado um plano estratégico de gestão e valorização das unidades de conservação. "A idéia não é apenas fazer uma avaliação, mas apresentar soluções", diz Capobianco. "A falta de recursos é uma questão central, mas há também um sério problema de gestão associado."

Por enquanto, as estatísticas permanecem dispersas e confusas. Mesmo dentro do atlas há informações conflitantes. Em certo momento, o texto fala em 651 unidades federais e 563.191,74 km2 (incluindo as Reservas Privadas do Patrimônio Particular, ou RPPNs). Em outra página, os totais mudam para 646 e 517.287,72 km2, além de outros dados numéricos que não conferem. As diferenças, segundo o autor principal, o biólogo Ricardo Machado, referem-se à inclusão e exclusão de algumas unidades pelo Ibama durante a edição.

Ainda assim, recheado de imagens magníficas, o livro dá uma idéia da grandiosidade das unidades de conservação federais. Segundo o atlas, mais de 21% do território nacional está protegido dessa forma. E o bioma mais privilegiado é a Amazônia, com 9,74% de sua cobertura sob tutela federal - sem contar as terras indígenas, que também pertencem à União, mas obedecem a uma hierarquia legal e política diferenciada.

PARQUE DE PAPEL

Segundo Machado, a lei do Snuc serviu para organizar a bagunça de nomenclaturas e modelos de gestão que existiam antes de 2000. Mas ainda não resolveu problemas crônicos das unidades, como falta de dinheiro e de gerenciamento adequado. O orçamento aplicado nas UCs federais nos últimos dez anos, segundo ele, não passou de R$ 300 milhões. "Nunca se criaram tantas unidades de conservação no Brasil, mas a maioria acaba virando parque de papel. Elas são criadas, mas não são implementadas", avalia o biólogo, diretor do Programa Regional do Cerrado da ONG Conservação Internacional e ex-coordenador-geral de Unidades de Conservação do Ibama. "É uma caminhada que precisa de duas pernas: no primeiro passo você cria e no outro, consolida."

Por "parque de papel", leia-se uma unidade que existe na lei, mas não na prática. Segundo os ambientalistas, não são raras as UCs que vivem semi-abandonadas, sem demarcação, sem orçamento, sem fiscalização, sem pesquisa científica e sem qualquer tipo de planejamento econômico ou social. Elas são protegidas apenas do ponto de vista legal - o que já ajuda muito, mas não garante sua conservação a longo prazo.

"A criação de unidades de conservação é excelente para evitar o desmatamento, porque os invasores sabem que nunca poderão reclamar título sobre aquelas terras. O que não impede é o roubo de madeira, a biopirataria ...", aponta Maretti. "Quanto mais avança a ocupação ao redor, menos essas unidades conseguem se manter pelo simples fato de existirem."

Para Capobianco, a defasagem de implementação das UCs federais é "inegável". Ele também ressalta, porém, o papel crucial das unidades no combate ao desmatamento. "Mesmo que o grau de implementação não seja adequado, as unidades de conservação desempenham um papel importantíssimo", diz. "Isso também é inegável." Segundo ele, em dois anos, o governo Lula criou 85 mil km2 de áreas protegidas - mais do que todos os governantes anteriores no mesmo período. A maior parte dessas terras (74 mil km2) está na Amazônia, onde o governo ainda pretende criar outros 120 mil km2 de unidades protegidas até 2007.

Esforço que é aplaudido pelas organizações ambientalistas, mas que não elimina as cobranças sobre o planejamento e a implementação dessas unidades. A lei do Snuc divide as UCs em 12 categorias, cada qual com uma função específica, que pode envolver atividades de ecoturismo e pesquisa científica, além da simples conservação dos recursos naturais.

Na falta de um planejamento de uso adequado, que valorize os recursos naturais e a participação da sociedade, muitos setores ainda enxergam as unidades de conservação como um empecilho ao desenvolvimento. Para a coordenadora de Pesquisa do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), Cláudia Azevedo Ramos, trata-se de uma visão limitada da importância dessas áreas. "Seja de uso direto ou indireto, as unidades protegem o ar, os mananciais, o clima, a saúde da população e mandam chuvas para as fazendas ao redor. São benefícios ambientais difíceis de serem mensurados economicamente, mas que não podem ser desconsiderados", diz.