Título: Um merengue de mágoas
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2005, Aliás, p. J3

A rixa é antiga e ganhou novo alento nas brigas do argentino Tevez com os brasileiros Carlos Alberto e Marquinhos, em diferentes treinos do Corinthians, e naquele jogo em que Desábato, do Quilmes, xingou Grafite, do São Paulo, de ¿negro de mierda¿ e foi dormir no xilindró. Longe dos gramados, bem longe dos gramados foi o que se viu na semana passada: o presidente Néstor Kirchner e o ministro Rafael Bielsa reclamando e agindo como se o Brasil fosse um país, não exatamente ¿de mierda¿, mas abusado, soberbo, glutão, de olho gordo em pelo menos três organismos internacionais: a ONU, a OMC e a FAO. Ora, isso é para quem pode. O Brasil pode; a Argentina, atualmente, não. Temos uma diplomacia e uma política externa mais consistentes que as dos argentinos. Quem assim também pensa é o editor-chefe de El Clarín, Ricardo Kirschbaum, que publicou, na sexta-feira, um artigo assaz sereno sobre os arrufos diplomáticos entre Bielsa e Celso Amorim. Àquela altura, a ¿pulseada¿ parecia ter-se afrouxado. Ainda bem, para os dois países. E com reflexos até entre os corintianos, que desistiram de exigir a cabeça do técnico Daniel Passarella, o outro argentino contratado a peso de ouro, mas não exatamente para deixar o timão no 16º lugar do Brasileirão 2005.

É preciso entender que os argentinos ainda se sentem na maior barafunda ¿ ¿revolcaos en un merengue¿, para usar a expressão de Enrique Santos Discépolo, o genial autor do tango Cambalache ¿ e sem perspectivas imediatas de uma ressurreição, sobretudo econômica, para valer. ¿O que é e onde está a Argentina?¿, perguntava-se o escritor Tomás Eloy Martínez algum tempo atrás. É uma potência ou uma impotência? Tem destino ou é um desatino? É o pescoço do Terceiro Mundo ou o rabo do Primeiro? E lhe reivindicava um lugar onde pudesse ficar quieta, ¿livre do humor dos governantes e da imaginação dos legisladores¿.

E livre, acrescento eu, dos seus delírios de grandeza e dos seus ressentimentos. A Argentina já foi a sexta potência econômica do mundo e a mais fulgurante nação latino-americana, uma espécie de Canadá do hemisfério sul. Em 1928, tinha mais automóveis que a França e mais telefones que o Japão. Hoje, sua presença no comércio internacional é 18 vezes inferior à que tinha no início do século passado. Seus recordes são agora de outra natureza. E um dos piores foi ter cinco presidentes da República no espaço de duas semanas.

Em outros tempos, a Argentina teria apresentado um candidato para concorrer com o chileno José Miguel Insulza a secretário-geral da OEA. Em outros tempos, a balança comercial entre a Argentina e o Brasil não estaria tão desequilibrada. Nossas exportações para lá cresceram 61% no ano passado e 35% no primeiro trimestre deste ano, ao passo que as importações de lá para cá aumentaram apenas 19% em 2004 e 8% no primeiro trimestre de 2005. Em outros tempos, o Brasil não teria comprado três dos maiores símbolos da indústria argentina: a petrolífera Perez Companc, a cervejaria Quilmes e a fábrica de cimento Loma Negra. Em outros tempos, Tevez não teria sido contratado por um clube brasileiro.

Temos uma parcela de culpa nos complexos e rancores argentinos. Passamos a vida inteira admirando nosso complicado vizinho pelas razões erradas. Gostamos de ir a Buenos Aires porque nos lembra Paris e outras metrópoles européias. Os portenhos sempre se orgulharam dessa charmosa semelhança com a Europa, buscada à outrance, diga-se; mas muitos deles passaram a repudiar essa visão como algo deletério. Para estes, a desgraça argentina está indissoluvelmente ligada à ilusória e ancestral fantasia de que em seu território se implantou uma Europa tropical, sem negros, índios e mestiços, que nada tem a ver com o resto do continente latino-americano.

Gabriel García Márquez detesta a Argentina, por razões que têm mais a ver com a síndrome que Stendhal involuntariamente criou para Florença do que com a política. Quando lá esteve pela primeira vez, em 1967, para promover Cem Anos de Solidão, acordava sempre no meio da noite suando frio, atormentado por uma angústia insanável: não se sentia bem sabendo-se nos confins do planeta. ¿Esta cidade fica demasiado longe de tudo. Daqui você não tem pra onde mais escapar¿, queixava-se. Nunca mais voltou. Em março de 1990, quando o escritor celebrava no Chile a volta da democracia, alguém lhe sugeriu atravessar os Andes e passar uns dias em Buenos Aires. ¿Não, obrigado¿, recusou García Márquez. ¿Tolero o México muito bem, apesar da poluição e da altitude. Mas em Buenos Aires, onde o ar é limpo, me asfixio.¿

Outro delírio: a posse das Malvinas. A Argentina tentou comprar as ilhas em 1953, quando o almirante Alberto Teisaire foi a Londres assistir à coroação de Elizabeth II. As negociações duraram menos de uma hora e o almirante causou péssima impressão ao comparecer ao encontro com altos funcionários da coroa sem o uniforme e as condecorações exigidos pelo protocolo. Quando lorde Reading, porta-voz do Foreign Office, disse ao militar peronista que a proposta argentina era inaceitável porque os habitantes das ¿ilhas Falklands¿ eram britânicos e, se submetidos a um referendo, votariam por unanimidade contra as pretensões argentinas, o almirante lhe deu razão e não tocou mais no assunto. As Malvinas continuariam sendo Falklands.

A menos, é claro, que a Argentina as tomasse pela força. Como? Com que efetivos militares? O candidato a maluco (ou a rato que ruge) demorou mas apareceu. Em abril de 1982, movido por um complexo de superioridade de proporções andinas e pela necessidade de desviar a atenção pública da carnificina promovida por sua ditadura, o general fanfarrão Leopoldo Fortunato Galtieri galvanizou o país com a ilusão de que as Forças Armadas argentinas podiam derrotar a Marinha inglesa e apossar-se do arquipélago.

Foi ali que a ruína argentina, iniciada em 1976, atingiu o ápice. E Discépolo revelou-se, postumamente, um profeta.