Título: 'Aceitaremos o Brasil na liderança'
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2005, Aliás, p. J3

Em dezembro de 2004, o argentino Torcuato Di Tella, 74 anos, nome estelar da sociologia latino-americana, renunciou ao cargo de secretário nacional da Cultura do governo Néstor Kirchner. Di Tella fora vítima das "malas palabras", como tem dito. Traduzindo: incomodado com o jogo de interesses do primeiro escalão do governo, subiu o tom das críticas, pediu segredo aos jornalistas, mas as farpas acabaram estampadas nos jornais. Uma delas virou leitmotiv para a saída da equipe de Kirchner: "Cultura não é prioridade. Nem para mim, nem para o governo", afirmou Di Tella no auge da irritação. E seguiu dizendo que prioridade na Argentina de hoje é trabalho e comida. Deu-se mal, ainda que tivesse tentado provar que prioridade não é sinônimo de importância. "Prioridade é prioridade", argumenta. "Veja o significado da palavra no dicionário." O fato é que o governo perdeu um colaborador de peso e a vida acadêmica recuperou um pesquisador incansável. Professor emérito da Universidade de Buenos Aires, e também professor das universidades de Columbia, Berkeley, Londres, Oxford e Kobe, no Japão, há décadas Di Tella vem estudando sistemas políticos, com ênfase no populismo e sindicalismo. Sobre Perón tem vários escritos. Sobre as peculiaridades do país que produziu Zapata, Salinas, Cárdenas, Fox e grande elenco, empreendeu um mergulho em águas profundas ao escrever Política Nacional y Popular en México. É dele a Historia de los Partidos Políticos en América Latina, obra de referência dos anos 90, ainda sem edição brasileira. E também o Diccionario de Ciencias Sociales y Políticas, que ajudou a compilar. Hoje o ex-ministro, da sala de aula, permanece atento à movimentação política no mundo.

Esta semana foi pródiga para as análises de Di Tella. Vejamos: o chanceler argentino, Rafael Bielsa, soltou o verbo contra a política externa do Brasil. Figurões do governo Kirchner fizeram-lhe coro. Celso Amorim, o colega brasileiro, tentou "desdramatizar" o qüiproquó, mas o presidente Lula pouco ajudou ao dizer que não abriria mão do papel de liderança que o Brasil quer para si. Kirchner, com seu olhar indefinido, disse que "é óbvio" que virá à Cúpula da América do Sul e dos Países Árabes na próxima terça-feira, em Brasília. Paira o suspense. As chancelarias dos dois países preparam uma reunião para amainar os ânimos e propiciar a foto da paz, com Lula e Kirchner posando de velhos amigos. Di Tella observa o agito e crava opiniões inesperadas para um argentino. Como a de que o Brasil tem, sim, cacife para ser o líder da América Latina. E que a Argentina é, sim, um país com viés racista.

Herdeiro de um rico empresário no ramo da metalurgia - Torcuato, o pai, já falecido, hoje batiza um instituto de pesquisa em ciências humanas e uma universidade privada, fundados pelo filho em Buenos Aires -, o polêmico professor Di Tella analisa as relações Brasil-Argentina nesta entrevista exclusiva para o caderno Aliás. Para ele, os dois países, hoje parceiros num tango desencontrado, podem acertar o passo.

Existe uma rivalidade Brasil-Ar-gentina?

Existe. Como existiria em quaisquer países vizinhos e com um certo peso.

Onde estão as raízes desse fenômeno?

Vêm do período colonial, da rivalidade entre Portugal e Espanha, duas potências no século 16 que, num dado momento histórico, entraram em declínio. As fronteiras que dividiram Portugal e Espanha ainda hoje separam Brasil e Argentina. As coisas começaram lá atrás. Havia o intento português de chegar até o Rio da Prata, assim como havia o intento argentino de incorporar o Rio Grande do Sul ou apoiar os movimentos independentistas desse pedaço do Brasil, no século 19.

Durante muito tempo, a Argentina pôde se gabar de ser um país com um nível econômico, social e cultural diferenciado. Essa superioridade continua a ser um fator constitutivo da identidade nacional?

Por volta de 1945, quando surgem o peronismo e a variante popular do varguismo, no Brasil, a Argentina tinha a quarta parte da população brasileira e um PIB praticamente igual. Era lógico que os argentinos se sentissem superiores. Desfrutavam de um padrão de vida mais elevado em relação não só ao Brasil como a toda a América do Sul e a vários países do sul europeu. Hoje o Brasil tem quatro vezes e meia a população argentina e um PIB três ou quatro vezes superior, dependendo da maneira como se faz o cálculo. Em meu país, continuamos um pouco melhor em valores per capita, mas, em termos globais, não há nem comparação.

Então o Brasil ficou muito maior?

Quando eu era menino, ia muito a São Paulo, onde tínhamos parentes e uma filial da metalúrgica de minha família, a Siam. A cidade me parecia pequena, pobre, sem bons hotéis e restaurantes, sem vida cultural. Isso mudou. São Paulo tem não só uma população muito maior que a de Buenos Aires, e isso não é necessariamente bom, como mais dinamismo econômico, cultural, científico. É certo que as tradições urbanas e culturais na Argentina são mais antigas, assim como nossa experiência comunicativa. Mas sou obrigado a admitir: nós ainda nos sentimos superiores em relação aos países vizinhos, exceção do Chile, com o qual há muito nos irmanamos.

Juan Bautista Alberdi, jurista e inspirador da Constituição de seu país, dizia que a Argentina é um pedaço da Europa que veio parar no hemisfério sul.

É verdade, somos em boa parte um país europeu transplantado na América. Entre 1880 e 1920, 30% de nossa população havia nascido na Europa, contra 5% no Brasil. Esse índice caía ainda mais no resto da América, especialmente no México. Em setores da burguesia argentina, os percentuais de europeus alcançavam 60%, 70%, incluindo a mão-de-obra qualificada das cidades. Por outro lado, tínhamos escassa população indígena e, pela falta de uma economia de plantações tropicais, era pequena a população escrava. A não ser na época da independência, quando Buenos Aires concentrou um terço dos escravos do país. Boa parte deles se alistou no exército para conseguir a liberdade, e não é difícil imaginar quem ia primeiro para a linha de fogo... Um dado interessante: formou-se na Argentina, por abrigar tantos europeus, uma burguesia e uma classe trabalhadora sem cidadania, porque os imigrantes não adotavam de saída a nacionalidade da nova pátria, ao contrário do que se passou nos Estados Unidos. Isso debilitou a expressão política dessas classes, que poderiam ter se organizado num partido liberal e num partido socialdemocrata, como aconteceu no Chile. Mas o rumo foi o do populismo.

Um jogador de futebol argentino foi detido em São Paulo por ter utilizado expressões racistas ao discutir com um jogador negro brasileiro. Foi um ato isolado ou reflete o pensamento da sociedade argentina hoje?

Há racismo na Argentina como em tantos outros países, incluindo o Brasil. E há a percepção de que o Brasil é um "país de negros". José Ingenieros, um intelectual muito influente em meu país no início do século 20, homem de idéias socialistas com toques de nacionalismo, pensava que a Argentina estava destinada ao predomínio regional porque tinha "mais terra que o Chile e mais raça branca que o Brasil". Essa percepção continua latente na população, apesar das cautelas com o "politicamente correto" e do fenômeno das migrações regionais, em que se vêem de forma crescente as mesclas raciais dos povos originais da América. Os mestiços são cada vez mais numerosos e visíveis.

E os negros?

Não, porque são efetivamente poucos na Argentina. Aqui o termo "negro" nomeia pessoas de origem total ou parcialmente africana, pessoas de origem indígena, mestiços...

O sentimento de superioridade dos argentinos foi abalado pela grave crise econômica de 2001?

Certamente, mas a crise não eliminou esse sentimento. Porque a decadência argentina não é um fenômeno novo, mas um processo com o qual se convive há décadas. A crise brutal de 2001 foi apenas a cereja da torta. A verdade é que a torta era imensa.

Tem havido tensões diplomáticas entre Brasil e Argentina. Como é que o presidente Kirchner vem lidando com isso?

Kirchner está interessado na co-operação com o Brasil e na consolidação do Mercosul, cuja perspectiva vejo com otimismo. Claro, ainda há problemas em relação ao nível das importações brasileiras e aos mecanismos do câmbio para proteger as moedas da desvalorização. Mas não pense que a Europa deixou de passar por esse mesmo processo. Passou, teve problemas seguidos e foi superando. Brasil e Argentina enfrentaram tempos difíceis, de ditaduras militares, e até acredito que isso tenha construído certa solidariedade entre os dois países, apesar das diferentes percepções raciais. Por outro lado, as praias brasileiras atraem cada vez mais argentinos. Experimenta-se nelas uma convivência em que os brasileiros são vistos como pessoas mais simpáticas, liberais, alegres. Essa percepção localizada vai se estender para um reconhecimento social maior.

O presidente Lula declarou que o Brasil não abre mão de vir a desempenhar um papel de liderança na região. O que o senhor acha disso?

O Brasil é a maior potência tanto na América do Sul quanto na América Latina. Portanto, é da responsabilidade de sua classe dirigente ir efetivando essa liderança de maneira gradual, levando em conta a suscetibilidade dos outros países, e em particular da Argentina, que há 50 anos também tinha as mesmas pretensões, porém as perdeu. É evidente que sobram ressentimentos por isso. Do ponto de vista de sua política externa, não creio que o Brasil esteja se perdendo num protagonismo excessivo.

A vontade brasileira de ocupar um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU tornou-se um fator de irritação no continente?

Sim, mas a pretensão é justa, repito. Só que o governo brasileiro deve criar consensos pouco a pouco e modificar a opinião pública argentina, que vai acabar aceitando isso sem maiores traumas. Há outros fatores a considerar. Nos Estados Unidos, existem setores interessados em aprofundar divisões entre os países da América Latina, na tentativa de fortalecer as relações "uno a uno", nas quais alcançariam maiores vantagens. A saída está em que os países sul-americanos se organizem em associações cada vez mais amplas, para então negociar com os Estados Unidos e a Europa.

O senhor diz que hoje não há um, mas vários peronismos na Argentina.

Sim, há pelo menos um peronismo de direita e um peronismo de esquerda, e essas correntes têm tido dificuldade de conviver. Em meu país o sistema político está particularmente incompleto, pois falta-nos uma direita com capacidade de conseguir votos, e não há uma vertente socialdemocrata suficientemente forte, como já existe no Chile, no Uruguai, no Brasil e está se formando até mesmo no México.

Mas o peronismo mudou?

O peronismo faz parte dessa grande família política que se equilibra no seguinte tripé: apoio popular, liderança das camadas médias para o enfrentamento das elites, vínculo carismático entre o líder e a massa. Do ponto de vista ideológico, partidos com essa matriz oscilam muito. Desde que voltou ao poder, em 1973, o peronismo já abrigou da direita fascistóide de um López Rega à esquerda revolucionária dos Montoneros, porque, no fim das contas, os populismos precisam do enfrentamento com o status quo para sobreviver. Além disso, a brutal desindustrialização argentina e o freio no desenvolvimento nacional desde o golpe de 1976 fizeram com que o país hoje assuma uma cara de 50 anos atrás! A Argentina está mais pobre, o trabalho, mais precário, e essa memória histórica do passado vai se infiltrando nas famílias, especialmente nos estratos populares. Meu prognóstico é que acabe por se formar na Argentina uma direita civilizada, ainda com restos do menemismo, mas sob novos partidos. E que, de outro lado, haja um peronismo renovado. Esse peronismo vai perder quadros para a direita, mas poderá se aliar à esquerda, ocupando o espaço clássico da socialdemocracia. Esse pode ser o caminho de um justicialismo liderado por Kirchner.

Como o senhor analisa a estrutura partidária brasileira?

Hoje a configuração mais freqüente, em países democráticos com certo nível de desenvolvimento, é um partido de coalizão de centro-direita e outro de centro-esquerda. Ainda há partidos de extremos, como a Esquerda Unida, da Espanha, ou a Frente Nacional, do ultraconservador Le Pen, na França, porém são cada vez mais raros. Ou então há uma ou outra cisão de linha política, como a que se vê no trabalhismo inglês. Mas, de modo geral, as coalizões são regra. No Brasil, tem-se uma direita forte de voto, que no entanto não consegue candidatos presidenciais de peso; uma esquerda que se agrupa em torno do PT de Lula; e um grande centro que ainda subsiste. Nele, há um PMDB com forças que migram para a direita e para a esquerda, num processo de desintegração que promete ser longo. E há um centro mais orgânico, ocupado pelo PSDB de Fernando Henrique, cujo futuro anda bastante incerto. Difícil fazer prognósticos.

Que futuro político o senhor vislumbra para a América Latina?

Ainda não se fez a consolidação democrática nos países. Nossos partidos precisam se desenvolver a ponto de superar crises como as do Equador e da Bolívia sem rupturas institucionais. Mas o futuro aponta para a convivência de uma direita e de uma esquerda civilizadas. E seguramente moderadas.