Título: O avesso da contracartilha
Autor: Mac Margolis
Fonte: O Estado de São Paulo, 08/05/2005, Aliás, p. J5

Se tivesse orelhas, as do governo certamente estariam em chamas. Mal foi divulgada a tal cartilha da linguagem politicamente correta, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, e o país inteiro já estava soltando o verbo. Jamais uma edição tão modesta ganhou tamanha repercussão. Da Academia Brasileira de Letras à blogosfera, todos se uniram para repudiar a tentativa oficial de podar o palato nacional. São os 96 verbetes mais poderosos do mundo. O ministério recuou, chamou o copy desk e prometeu revisões à altura das críticas. A julgar pelos humores do público, seria mais fácil cuspir ao vento. Ninguém pode acusar Brasília de falta de coragem. Mas não se precisava de Duda Mendonça para prever que essa missão reeducativa estava fadada ao mesmo fim que o do Conselho Federal de Jornalismo e da Agência Nacional de Cinema e Audiovisual - a auto-imolação.

Não tenho competência nem vocabulário para decifrar esse último embate do governo com a sociedade, que já foi autopsiado com maestria por cronistas, juristas, psicanalistas e imortais. Mas desconfio que a reação à cartilha diz volumes sobre a arte de ser brasileiro. De um lado é a reação visceral contra o autoritarismo, o legado saudável dos anos de mordaça, talvez: o Brasil não aceita mais se calar, nem por ordem e muito menos por ideologia. Mas, por outro, tenho a sensação de que há algo de torto por trás dessa indignação quase unânime, algo mais que o rechaço à tentativa de cercear a liberdade.

A fúria de denunciar a censura oficial parece trair outra. Há no Brasil um certo deleite em ser politicamente incorreto. Sob a bandeira da liberdade de expressão, a língua nacional corre solta. Um programa de televisão humorístico até consagrou essa postura: ofendendo a todos, se diz, ninguém pode se sentir alvejado. É a isonomia do esculacho. Assim funciona a contracartilha nacional. (Graças a ela, podemos assistir a um desfile de piadas chocas e blagues sofríveis, como a da mulher estilista que puxa do armário um negro de sunga, "meu pretinho básico".) A idéia é tão singela quanto sedutora. Com o levedo de humor, vale tudo. Só que não é tão simples. Assim, a ignorância é facilmente travestida de irreverência e o deboche, de fina paródia. No fundo, esse gênero não derruba estereótipos, espalha-os. Arranha um irreverente e logo aparece um preconceituoso.

Convenhamos, preconceitos existem e rosnam, até dentro do peito do mais iluminado de nós - e não precisamos de nenhum governante para dizer que contê-los faz parte do pacto de civilidade. Mas quem sugeri-lo em voz alta arrisca ser chamado de Amélia ou careta a serviço dos americanos. Enfim, ensina a contracartilha, encher a boca de sonoros termos como "boiola", "negão", "paraíba" e "sapatão" faz parte da linguagem popular. Então, que vergonha há em lançar mão deles? Chega de hipocrisia, dizem os contras. O que é um deficiente físico, aliás, senão um manco com mais sílabas. Yes, nos temos japas, e não nisseis. Bye bye negro, alô negão.

Só que, como qualquer cartilha, a do politicamente incorreto tem suas regras, algumas delas não escritas. Por exemplo, pode-se chamar:

um crioulo de crioulo, desde que não seja maior que você.

toda lésbica de sapatão, com exceção de sua filha, que está passando por dúvidas.

de baianada a infração de trânsito, a não ser que o infrator seja João Ubaldo Ribeiro.

Outro dia, um cronista carioca disse mais. Sugeriu que qualquer um desses epítetos pode virar afago, desde que temperado por um sorriso, um tapinha nas costas ou algum outro "atenuante". Pode ser. Afinal, como ouvimos outro dia, até na Argentina "negrito" é um termo de carinho. (Com a palavra, Grafite.) O problema é: o racismo funciona como um default cultural. Ao mínimo estresse ou contratempo social, o sorriso some e o preconceito dispara, como o braço desgovernado de Peter Sellers, na pele do protagonista criptonazista do filme Dr. Fantástico ou Como Aprendi a Parar de me Preocupar e Amar a Bomba. Assim, quase qualquer atrito de rua pode acabar em ofensa inafiançável - como foi o caso há alguns meses no Rio de Janeiro entre um juiz (branco) e uma guarda municipal (negra), que ousou multá-lo.

O cronista Zuenir Ventura, com a eloqüência de sempre, investiu contra a cartilha de Brasília na sua coluna em O Globo. Marcou bem as diferenças culturais entre o Brasil e os Estados Unidos, onde a moda PC beira o surreal. Afirmou ainda que "não são as expressões que criam os preconceitos, mas o contrário". Foi muito modesto. Um cronista da estampa de Zuenir sabe melhor que ninguém o poder das palavras. A linguagem sopra vida às idéias, boas ou ruins. Pode condenar preconceitos ou levá-los aos quatro ventos. Para quem duvida, experimente entrar numa academia de jiu-jítsu e torcer pelo "veado" da sua preferência.

Sempre achei um dos milagres do Brasil o molejo da cultura nacional - a capacidade de contornar conflitos e azeitar atritos que em outra sociedade acabariam em confusão. Sem esse recurso, os americanos se perderam num matagal de hifens (African-American, Native-American, Greek-American) e eufemismos (sex worker em vez de prostituta, cabin person em vez de stewardess) que são um atentado à comunicação e à inteligência. Não é de admirar que a iniciativa oficial de educar a língua brasileira tenha provocado a estrondosa vaia. Mas isso não significa que todos rezem pela mesma contracartilha. Preconceito é preconceito, seja de que lado do Equador. É confortante imaginar que um sorriso ou intimidade, ou qualquer nuance cultural, possa açucarar uma ofensa. Mas é uma fantasia. Assim como em campo de futebol, só falta combinar com o outro lado. Grafite que o diga.