Título: 'Ele passou dos limites' criticam diplomatas
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2005, Nacional, p. A4

Mudou o clima entre o governo brasileiro e o governo argentino, depois que o presidente Néstor Kirchner decidiu encerrar, abruptamente, sua participação na cúpula. Até os que eram favoráveis a manter a linha de tratamento privilegiado para o governo da Casa Rosada, no pressuposto de que a Argentina seria um aliado fundamental, acabaram perdendo voz e espaço. "A partir de agora, o governo vai endurecer como queriam alguns setores", avisou um alto funcionário do governo brasileiro O gesto de Kirchner foi considerado exagerado e inoportuno. "Ele passou dos limites", irritaram-se os assessores brasileiros. A insatisfação da diplomacia verde-e-amarela começou no momento em que o presidente do Peru, Alejandro Toledo, começou seu discurso citando Lula e não o presidente argentino. Com deselegância, Kirchner abandonou a cadeira onde estava e foi falar no celular. Ao retornar ao seu lugar, ficou de lado para Lula e não cumprimentou o presidente peruano ao fim de seu pronunciamento.

Outros chefes de Estado que antecederam Toledo fizeram o mesmo.

Citaram Lula como sendo o principal responsável pelo encontro entre sul-americanos e árabes e desconheceram a presença do presidente argentino. Às 11 horas da manhã, Kirchner mandou ao avisar ao governo brasileiro que teria de voltar para a Argentina. O aviso pegou de surpresa o Itamaraty e o próprio Palácio do Planalto.

Nas conversas de bastidores, no Hotel Blue Tree, os dois se cumprimentaram friamente, sem a mesma fraternidade e intimidade dos tempo em que Brasil e Argentina viviam uma relação mais próxima.

Entre os brasileiros houve até a preocupação de investigar se o presidente Lula, que jantara na véspera com Kirchner e o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, teria cometido alguma gafe involuntária. Não teria ocorrido nada de anormal, segundo relato do presidente venezuelano. Os três brindaram e comemoraram uma forte aliança entre os três países. Como resultado, Chávez saiu do jantar anunciando a união das nações da América, tal o clima de cordialidade e integração entre todos.

Mas foi de manhã, no Centro de Convenções de Brasília, que Kirchner enviou seus primeiros sinais de descontentamento. Foi tão clara a demonstração de aborrecimento que pareceu, para o governo brasileiro, menos uma reação emocional e mais uma bem pensada atitude política. No almoço, no hotel brasiliense, Lula ainda tentou quebrar o gelo e chegou a brincar, convocando os chefes de Estado para uma foto, atendendo pedido de Kirchner.

Os assessores brasileiros não vêem motivos que justifiquem o desconforto do presidente argentino. Eles lembram que foi o Brasil que mais brigou para incluir no documento final do encontro a citação em que apelam para uma retomada das negociações com a Argentina sobre a soberania das ilhas Malvinas. Rafael Bielsa, chanceler argentino, procurou o governo brasileiro e agradeceu.

A indelicadeza diplomática acabou enfraquecendo a posição do assessor especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia, e do secretário-geral do Itamaraty, Samuel Pinheiro Guimarães, ambos favoráveis a uma política de distensão e aproximação com Buenos Aires. Agora, segundo assessores, tornou-se hegemônica dentro do governo brasileiro posturas como a do ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, que prega um endurecimento comercial com o país vizinho.