Título: Célula adulta age como embrionária
Autor: Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/05/2005, Vida&, p. A18

"É o melhor dos dois mundos." Assim a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da Universidade de São Paulo (USP), define o novo trabalho de seu colega de profissão Rudolf Jaenisch, membro do prestigiado Instituto Whitehead, nos Estados Unidos. Na nova edição da revista especializada Cell (www.cell.com), ele desvenda o mecanismo que permite certas células-tronco adultas se comportarem como embrionárias, com a capacidade de se multiplicar em laboratório ao mesmo tempo que se mantêm indiferenciadas. O segredo está guardado em uma "chave" molecular, o gene Oct-4. A molécula trabalha no estágio inicial do embrião, "segurando" as células para não se diferenciarem antes da hora. No tempo certo, o gene se desliga e as células então formam os tecidos certos, como cardíaco, ósseo, cutâneo e daí em diante.

Com o controle do gene, é hipoteticamente possível fazer com que certas células-tronco adultas sejam mantidas neste estágio sem diferenciação, o que pode expandir seu campo de atuação na pesquisa de novos tratamentos.

As células-tronco têm a capacidade virtual de formar diversos tecidos do corpo e, por esse motivo, são encaradas atualmente como uma esperança na criação de terapias para doenças degenerativas como mal de Parkinson e diabete. Elas são encontradas no corpo em locais como medula óssea, sangue e cérebro. Porém, são aquelas retiradas de embriões que têm tal versatilidade multiplicada e são mais fáceis de serem cultivadas artificialmente.

Por outro lado, as células-tronco embrionárias estão no centro de um debate ético sobre a validade de usar embriões humanos - que para alguns grupos, como os católicos, podem ser considerados seres vivos - na pesquisa de novos métodos terapêuticos, que podem aliviar o sofrimento de milhões de pessoas no mundo.

O governo dos Estados Unidos, por exemplo, onde Jaenisch está baseado, não financia o trabalho com células-tronco embrionárias, apenas adultas, por questões mais religiosas do que científicas, decisão que engessou algumas linhas de pesquisa no país. O novo estudo se esquiva da polêmica.

NOCAUTE

Jaenisch se firma no trabalho de um pesquisador do seu laboratório, Konrad Hochedlinger, que por curiosidade "ligou" o gene Oct-4 dormente em camundongos transgênicos para saber o que ocorreria. Como conseqüência, os animais tiveram tumores no intestino e na pele porque as células se desenvolviam de forma descontrolada. Por outro lado, quando o gene era "desligado" ou "nocauteado", como dizem os geneticistas, o tumor enfraquecia, um indicativo de que o processo pode ser revertido.

"(A ativação do gene) Pode levar à formação de um câncer, por isso é importante saber o momento de desligá-lo", comenta a geneticista da USP.

A expressão do gene Oct-4 já havia sido observada em certos tumores, como câncer de testículo e de ovário. Já a expansão reversível "de células progenitoras da pele pela indução do Oct-4 pode ser de um potencial interesse médico (...), que podem ser usados na regeneração da epiderme", como para tratar vítimas de queimaduras, escrevem os cientistas na revista Cell.

POTÊNCIA

Apesar de a dupla evitar a expectativa criada em torno da descoberta, o que mais chama a atenção na experiência simples é a possibilidade de se manipular as células-tronco adultas da mesma forma que se trabalha com a variação embrionária.

O cultivo em laboratório é um processo essencial para que o cientista possa estudá-las e para a viabilidade de tratamentos. Só que, normalmente, uma célula tirada de um tecido adulto começa quase que imediatamente a se transformar. Sua manutenção indiferenciada exige o uso de substâncias químicas cujos efeitos ainda não foram completamente esclarecidos nem mantidos em longo prazo.

"Jaenisch mostra que é possível multiplicar quase infinitamente essas células sem que elas percam a pluripotência (a capacidade de formar qualquer tecido)", explica Lygia. A ferramenta genética, diz ela, aumenta a possibilidade de se utilizar a fonte adulta. Para o americano, a descoberta fornece uma nova maneira de encarar as células-tronco, pois torna possível implantá-las de volta no paciente sem a formação de tumores.

O laboratório, localizado dentro do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), continua a pesquisar o potencial do gene Oct-4. Agora, eles testam se sua ativação pode facilitar a reprogramação de células somáticas (qualquer uma exceto os gametas sexuais) e a manipulação de células-tronco embrionárias para cada paciente.

Jaenisch é um pioneiro no trabalho com transgenia. Ele foi o criador do primeiro modelo animal transgênico e conduziu a primeira correção genética em camundongos pela clonagem terapêutica.