Título: Os 80 anos de Rubem Fonseca
Autor: Ubiratan Brasil
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2005, Caderno2, p. D5

Um almoço na casa da filha Beatriz marca hoje os 80 anos do escritor Rubem Fonseca. Será, como previsto, uma festividade fechada, para parentes e poucos amigos. O escritor que inaugurou a moderna literatura urbana no Brasil, ao revelar as entranhas da sociedade e antecipar a escalada de violência no País, continua fiel às suas convicções - se é divertido e amoroso com os conhecidos, evita qualquer contato com imprensa e fãs, agarrando-se à privacidade. Poucos, portanto, identificam um dos principais autores brasileiros vivos no homem que diariamente circula pelas ruas do Leblon, no Rio, protegido por um boné, passeando na praia, comprando jornais, freqüentando cinemas. E, ao suspeitar de que foi reconhecido, Fonseca afasta-se rapidamente. Mesmo os amigos não arriscam muitos palpites sobre o escritor. Sabe-se que dorme pouco, acorda muito cedo, lê muito (sobre praticamente tudo), adora cinema (foi o primeiro crítico da revista Veja) e música (rock inclusive), morou algum tempo no mitológico hotel Chelsea de Nova York, conhece como ninguém a literatura americana e, atendendo ao clamor do sangue luso, não só torceu durante muito tempo pelo Vasco da Gama como ainda hoje não resiste a um bacalhau com brócolis.

"Tudo o que eu tenho a dizer está nos meus livros", costuma responder àqueles que buscam mais detalhes. E quem o lê com atenção não pode discordar. Mandrake, o Hamlet carioca de A Grande Arte, por exemplo, é um alter ego sem grandes retoques de seu autor: ex-policial, advogado, erudito, obsessivo, paixão incontrolável por mulheres e até felinófilo. Sua escrita é tão personalizada que por seus labirintos costuma espalhar referências a amigos e admirações. Vasco Japiassu, do mesmo A Grande Arte, é uma homenagem a seu clube do coração e ao publicitário Celso Japiassu, com quem praticou cooper.

Em alguns casos, a semelhança forçada provoca confusões. Em um dos contos de Feliz Ano Novo, livro apreendido pela censura do governo militar por atentar contra a moral e os bons costumes, um executivo sai em seu carro grande, depois de jantar com a mulher e os filhos, para atropelar pessoas na rua. Na época do lançamento, Fonseca, então diretor da Light, usava um carro grande, da companhia, o suficiente para se espalhar a história de que o escritor sublinhava na ficção seus desejos reprimidos de violência. Na verdade, mais um caso para o cordel de lendas que envolve sua figura. O que sobra de todas, além do humor, é a constatação de que a obra de Fonseca vale mais pelo seu conteúdo estético que semântico. E que ninguém se iluda: a linguagem de Fonseca é altamente sofisticada.

"Um dia, a gente estava andando pelo Leblon, vimos uma barraquinha montada, com um sujeito vendendo livros, paramos para olhar. Tinha lá livros do Rubem. O vendedor quis se vangloriar e disse: 'Vendo livros para gente muito famosa. Até o Rubem Fonseca compra aqui'", diverte-se a também escritora Patrícia Melo, que adaptou Bufo & Spallanzani para o cinema e teve seu O Matador vertido por Fonseca para a tela grande. Segundo ela, o escritor é um leitor voraz: gosta de falar de literatura, mas só da dos outros. "Odeia a fama, odeia pompa, é uma espécie em extinção."

Outro amigo de longa data, João Ubaldo Ribeiro conta que, embora vizinhos, eles se falam mais pelo computador que pessoalmente. "Como acordamos cedo e temos internet com banda larga, um procura pelo outro e a gente passa um tempão se correspondendo", conta Ubaldo. O assunto? "Tudo e nada, geralmente conversa à toa de amigos."

Pode até ser que os dois se encontrem hoje para comemorar o aniversário, mas Ubaldo conta que, às vezes, quando um passa pelo outro, disfarçam e seguem adiante. "Acontece com todos. Um dia, você está com seus pensamentos ou com pressa e não quer parar com um amigo querido. Então faz que não vê", confessa, rindo. "O Rubem está farto de saber que eu conheço seus truques e, mesmo assim, passa ao largo. Como ele é meio doido e eu também, fica tudo bem entre a gente."