Título: "Não serei um secretário do cinema"
Autor: Patrícia Villalba
Fonte: O Estado de São Paulo, 11/05/2005, Caderno2, p. D9

Diante de toda a festa que foi feita ao anúncio de seu nome como novo secretário de Cultura do Estado, em substituição a Claudia Costin, o cineasta João Batista de Andrade avisa os colegas de ofício: não quer ser um "secretário do cinema". João Batista chega ao cargo com o objetivo de, finalmente, formular uma política cultural consistente para o Estado que, se concretizada, vai marcar a era tucana em São Paulo - são dez anos, desde a gestão Mário Covas. E contar pontos na eleição do ano que vem, evidentemente. Na carta de intenções está a aguardada lei de incentivo estadual. Força política, neste primeiro momento, o cineasta terá - ele foi indicado pelo PPS, partido que se tornou parceiro do governador Geraldo Alckmin na Assembléia Legislativa. Nesta entrevista ao Estado, no calor da posse, João Batista fala das suas primeiras impressões no cargo: Da maneira como está a cultura no País, com as leis de incentivo como mecanismo primordial, os produtores culturais - e principalmente os cineastas - se deram conta de que têm de lidar com política. Como a experiência de um cineasta pode ajudar na Secretária da Cultura?

O cinema é uma atividade que para trabalhar, você tem de fazer política. Você tem de fazer política e trabalhar para criar condições para ser cineasta. Isso dá aos cineastas esse caráter político, que às vezes é malvisto, chamado de politiqueiro. Não é politicagem, a atividade política do cineasta nunca interferiu na atividade artística dele. Mas o cineasta aprendeu que, para poder filmar, que é um ato individual, ele tem de ser coletivo. É um dado interessante, porque para poder filmar, ele tem de defender o cinema brasileiro.

E é preciso também ter um jogo de cintura político.

Sim. Eu tenho falado muito para que as pessoas não pensem que porque eu vim da área cinematográfica vou ser o secretário do cinema. Isso não existe. A minha experiência de atuação política na área de cinema servirá para uma atuação mais global. Porque, no nível da reflexão, eu nunca me restringi à área de cinema quando escrevo sobre cultura. Mas aprendi muito a fazer política cultural com o cinema.

Carlos Augusto Calil na secretaria municipal e o senhor, na estadual - dois cineastas. Será desta vez que um projeto maior para o cinema paulista vai deslanchar?

Sim. Os cineastas vão ter de fazer um esforço muito grande, sabendo que eu e o governador estamos interessados em construir uma boa política cultural para o cinema. É preciso atacar as questões fundamentais do cinema. Não é só chegar no Estado e pedir dinheiro, tem de dizer o que significa esse dinheiro. É preciso discutir essa produção cultural e como a população vai ter acesso a esta produção cultural.

Sua carreira de cineasta pára agora?

Não exatamente. Estou tranqüilo, porque assumo num momento de bastante realização pessoal. Tanto pelo reconhecimento da minha carreira de documentarista, desde os anos 60. Céu Aberto, meu documentário sobre Tancredo Neves, foi lançado em DVD e muito bem-recebido. Esse reconhecimento me dá muita paz. Meu longa de ficção, Veias e Vinhos, está em fase de finalização, para ser lançado em julho. E acabei de filmar um documentário, sobre uma pessoa das mais queridas, que é o Vlado (o jornalista Vladimir Herzog), meu amigo. Vai ser exibido em outubro nos cinemas, quando a gente vai rememorar os 30 anos de sua morte. Os filmes vão para a finalização sem problemas, não vão atrapalhar o meu trabalho político. E o importante é que eles vão estar prontos para exibição no segundo semestre.

Como se sabe, a fatia que cabe à Cultura nos recursos do Orçamento é pequena. Como o senhor pretende lidar com isso?

O orçamento é apertado e há atividades dispendiosas, mas que pagamos com muito prazer, como a TV Cultura, que faz parte do orçamento da secretaria. Mas numa época dessa, com a exclusão que existe, falta dinheiro para tudo. Não há um setor do governo que tenha nada perto do que precisa. Então, é preciso ter um projeto global, uma visão geral da sociedade, para saber como aumentar a participação da Cultura no Orçamento do Estado e o que esse dinheiro vai fazer na cultura.

A solução, então, passa pela continuidade à política de parcerias com a sociedade?

Para mim é fundamental em todos os setores da produção cultural essa parceria com a sociedade em geral, com as organizações culturais e os empresários. Muitos dos empresários ainda não usam as leis de incentivo. Também precisamos de parcerias com as outras secretarias. Uma ação conjunta com a Secretaria da Educação, por exemplo, é fundamental.

Diante da falta de recursos, o Estado tem transferido grande parte da sua responsabilidade para a sociedade, até mesmo quando os recursos públicos estão envolvidos, caso das leis de incentivo. Qual o senhor acha que é o papel do Estado hoje dia na área?

O Estado tem de continuar tendo instrumentos diretos de administração cultural, mas também é preciso pôr a sociedade nesse processo. Porque o Estado é falido, não dá conta de tudo. O Estado precisa usar a sua capacidade normativa e indutiva, além da sua participação direta. Por exemplo, temos as Organizações Sociais, para resolver problemas de vários órgãos da secretaria. Então, dizem que se está passando tudo para eles. Não é isso. É um mecanismo legítimo jurídica e administrativamente. O que não se pode abrir mão é da diretriz cultural. Já os instrumentos, vamos ter de usá-los em parceria com a sociedade.

A ex-secretária Claudia Costin não teve força política para criar uma lei de incentivo estadual. O sr. pretende retomar o debate?

Vou retomar a leitura sobre essa lei que não chegou a ser regulamentada e também sobre o Fundo de Cultura, que está na Assembléia Legislativa. Tudo, como contribuição à discussão de uma idéia maior da política cultural do Estado. Sei que precisamos ter isso em mãos, até o final do ano para ser incorporado ao Orçamento do ano que vem. Vamos ter de trabalhar muito até setembro, para ter clareza de como tudo se encaixa.

Claudia Costin enfrentou algumas dificuldades por não ser da classe artística. Para o senhor, tendo vindo da classe, é mais fácil ou mais difícil?

O problema não é ser da classe artística ou não. É claro que vindo, você tem mais credibilidade com ela. Mas, por outro lado, a cobrança pode ser muito maior.

O cineasta e novo secretário da Cultura do Estado, João Batista de Andrade, concluiu na semana passada seu novo filme, Trinta Anos depois, sobre a vida do jornalista Vladimir Herzog. Mas um documentário não é o suficiente para contar a história de Vlado, um dos mártires da luta contra a ditadura, que foi assassinado nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo. João Batista tem um projeto maior, para filmar a história do amigo, uma ficção com estrutura de documentário.

O projeto foi aprovado pelo Ministério da Cultura, com orçamento de R$ 3,8 milhões, a serem captados por meio da Lei do Audiovisual. "Continuo sendo cineasta. Em algum momento eu vou filmar, no segundo semestre no ano que vem ou no outro ano ainda. Só a captação de recursos vai dizer."

O corpo de Vlado foi apresentado pendurado em uma grade pelo pescoço por um cinto, em 25 de outubro de 1975. A versão oficial era de suicídio. É uma história que João Batista conhece muito bem. "Não foi nem prisão, ele se apresentou para depoimento. E morreu no mesmo dia. Qualquer um poderia estar ali. Ele era intelectual fino, anticlandestino por natureza", observa. "A história do Vlado é um momento decisivo na vida brasileira, e elucidá-la é ajudar a entender o que foi o período, das contradições da política brasileira."