Título: Não choro por ti, Argentina
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Meu tio Roberto de Abreu Sodré me contava que, tendo passado a sua lua-de-mel, em 1946, em Buenos Aires, quando lá chegou, partindo de São Paulo, se sentiu como se tivesse saído de uma pequena cidade do interior e aportado em Paris. Tudo era belo e grandioso. Não tendo tomado partido, até quase o final, na 2.ª Guerra Mundial, a Argentina, auto-suficiente em petróleo, pôde obter grandes lucros comerciando alimentos com as facções em litígio e assistia ao término do conflito com os cofres abarrotados de ouro. A elite portenha foi então às compras. Arrematou, na Europa, todas as antiguidades, obras de arte e objetos de valor que pôde, uma vez que, no Velho Continente, em escombros, as pessoas se desfaziam de seus valiosos pertences por pouco mais que um prato de comida. Buenos Aires tornou-se, assim, uma portentosa metrópole, que nada ficava a dever às mais maravilhosas capitais européias. Vem dessa época, no Velho Mundo, a popular expressão "rico como um argentino". Era a mais pura verdade. Na primeira metade do século passado, a Argentina despontava como nada menos que uma das seis maiores economias do planeta. "Deus é argentino", acreditava-se então. Dotara a nação de terras de uma fertilidade inigualável, planas como uma mesa de bilhar, onde se produzia trigo em extrema abundância e onde pastava o melhor gado do mundo. Não apenas isso. Os argentinos - de ascendência espanhola e italiana em sua esmagadora maioria - compunham um povo "europeizado", muito bem-educado e civilizado. Alguém, com muita propriedade, definiu os argentinos como sendo "italianos que falam espanhol, vivem na América e se sentem ingleses". Nada mais correto. Os argentinos de então realmente se sentiam deslocados por viver ao sul do Equador. Os movimentos políticos de cunho nazi-fascista que existiram por lá descartavam qualquer aliança com seus similares brasileiros. O nosso povo era "mestiço demais", horrorizavam-se eles. "Macaquitos" era como nos denominavam, arrogantemente. Para eles, o Brasil era um país pobre, com uma população impura e inculta, condenado a um futuro medíocre.

Nada como a passagem do tempo. Enquanto a riqueza argentina se dissipava nas mãos de Perón e de seus desastrados sucessores, o Brasil tratava de se industrializar, tomando o bonde da História que nossos vaidosos vizinhos se deram ao luxo de desprezar. Já em meados da década de 1960, o produto interno bruto do Brasil superou o da Argentina. Nos anos 1970, eu bem me lembro, éramos nós, brasileiros, que invadíamos Buenos Aires à procura de pechinchas. Vim a conhecer a capital portenha nessa época. A melhor definição que ouvi era a de que a cidade era uma velha dama, com porte de rainha, mas com trajes de mendigo.

A Argentina, por bem ou por mal, nunca mais se recuperou. É um país que se subdesenvolveu exclusivamente por mérito próprio. Não foi vulcão, terremoto ou furacão. Foi mesmo excesso de soberba e falta de visão estratégica. O trigo e a carne, que fizeram a grandeza nacional, tiveram seus valores rebaixados no mercado internacional e os argentinos não tinham nada a oferecer em seu lugar, a não ser os produtos de uma indústria incipiente e ineficiente.

Estive, com minha mulher, em Buenos Aires, recentemente. A cidade está bonita, com os jardins bem cuidados, mas não pude deixar de reparar que o motorista do carro que o hotel pôs à nossa disposição era nada menos que um engenheiro, que fora um malsucedido industrial. Aquele atencioso senhor era o mais perfeito retrato de seu país. Por detrás de sua aparente solicitude havia um homem inconformado, mal resolvido, ainda amargando as glórias de um passado que não mais lhe pertencia.

A Argentina de hoje é menor do que o Estado de São Paulo. Os paulistas são uma população mais numerosa e têm uma economia maior que o nosso desafortunado vizinho do sul. O slogan oficial afirma que "tudo nos une, nada nos separa". Não é bem assim. Na verdade, muito pouco nos une e todo um abismo nos separa. O Brasil, com todos os seus contrastes, é uma nação com os olhos postos no futuro. A Argentina, tão homogênea na aparência, ainda vive de suas lembranças do passado.

Pode o Mercosul dar certo nestas circunstâncias? Eu, particularmente, duvido. Não somos "hermanos" de verdade. Irmãos são aqueles que crescem juntos, têm uma história em comum e compartilham os mesmos sonhos. Até a música reflete as nossas diferenças. O samba brasileiro é alegre, brejeiro, descontraído e otimista. O tango argentino é triste, pesado, fatalista e negativista. Pouco temos em comum, a não ser a condição geográfica. Somos sul-americanos, o que para nós, brasileiros, é motivo de júbilo e para eles, argentinos, é a razão de sua desgraça.

A atitude do presidente Kirchner, ao abandonar intempestivamente a cúpula árabe-sul-americana, é emblemática. Reflete a postura de todo um povo que ainda reluta a aceitar a sua realidade.

Assim sendo, não consigo entender o empenho do Itamaraty em dar prioridade às nossas "boas relações" com os argentinos. Nada temos a oferecer-lhes. E eles, na verdade, nada querem ou esperam de nós. Seria muito mais proveitoso para nós que nossos excelentes quadros diplomáticos empenhassem os seus talentos em busca de maior entrosamento com as nações que realmente contam na atual conjuntura internacional.

Deixemos os argentinos a sós, com as suas amarguras. Se queremos ser grandes, devemos pensar grande e, sobretudo, estreitar laços com aqueles que já o são.