Título: Nem tudo é relativo
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/05/2005, Nacional, p. A6

A defesa da democracia e o repúdio ao terrorismo são conceitos de caráter absoluto É claro o desejo do governo federal de firmar conceito geral em torno do sucesso da Cúpula América do Sul e Países Árabes, e mudar logo de assunto.

Sob certo aspecto, é até justo, por tratar-se da defesa de uma posição.

Ninguém nega a quem patrocina um grande acontecimento o direito de ressaltar seus pontos positivos e deixar de lado os negativos.

Mas, como a vontade do governo - ao contrário da orientação vigente no Itamaraty - não pode nem deve preponderar sobre os interesses do País e o sentimento majoritário da Nação, cumpre ainda discutir declarações feitas durante o encontro pelo presidente da República e pelo ministro das Relações Exteriores.

Luiz Inácio da Silva e Celso Amorim transmitiram opiniões bastante semelhantes a respeito de democracia e terrorismo. O presidente disse que "cada um tem uma idéia" a respeito do que seja democracia; o chanceler considerou o repúdio ao terrorismo uma questão também de foro íntimo.

"Cada um interpreta como quer", afirmou.

Ambas as manifestações significam, mais que precipitação no afã de agradar aos hóspedes da cúpula, acréscimos importantes à extensa lista de gestos displicentes em relação a princípios sobre os quais não cabem interpretações.

Não é relativa a defesa da democracia - ausente em 17 dos 22 países árabes e periclitante em boa parte dos sul-americanos convidados - nem o repúdio ao terrorismo. Ou sobre esses temas se tem uma posição de caráter absoluto ou a flexibilidade equivale a dizer que não se tem posição alguma, que se admitem transgressões.

Digamos que tal desapreço por valores majoritariamente consolidados no plano interno e na conduta externa do Brasil não seja uma surpresa. A subserviência da diplomacia ao gosto governamental pela reverência a ditaduras as quais visita o presidente da República sem referência à questão dos Direitos Humanos virou regra.

A vocação palaciana para atos e pensamentos de natureza autoritária também. Mas nenhum veto a visto de corresponde estrangeiro, proposta de controle estatal da imprensa ou fiscalização oficial da produção cultural se compara à naturalidade com que o governo brasileiro aceitou subtrair a democracia de uma carta de intenções políticas firmada em reunião internacional.

Diz a diplomacia brasileira que a decisão não resultou de pressão dos árabes, como registrou o noticiário sobre a cúpula. Bem pior, então. Foi de livre, consciente e espontânea vontade, que o governo achou justa a exclusão do tema.

Em entrevista após o encerramento da cúpula, o presidente Lula considerou que seria "falta de democracia" estabelecer em um "documento plural" o conceito de democracia "que eu entendo, sem respeitar o direito de democracia dos outros". Referia-se não a chefes de nações livres, mas a dirigentes de convicções totalitárias.

Por esse raciocínio, o Brasil absteve-se de cobrar respeito à democracia aqui e em outros países vigentes e ainda deu a idéia de que o País aceita como legítimas todas as peculiaridades regionais, inclusive as produzidas por regimes de opressão, cujas práticas incluem, por exemplo, a tortura.

Talvez porque tenha se tornado uma convenção entre nós desconsiderar o valor das palavras e aceitar como natural a substituição de conceitos pelos seus contrários e vice-versa, há quem considere o desapreço democrático um assunto menor.

Mas não é e haveremos de ser cobrados por isso cedo ou tarde. Assim como a defesa da democracia não é uma agenda americana. Ontem nos jornais havia gente inteligente abraçando tal deformação conceitual, sob o argumento de que a inclusão desse ponto no documento da cúpula significaria rendição à posição do governo George W. Bush por causa da pregação democrática adotada como lema da política externa dos Estados Unidos.

Perfeitamente. Por essa ótica de oposição sistemática, cega e, sobretudo, burra a tudo o que dizem os norte-americanos, se Bush amanhã fizer a profissão de fé da paz, justo será que o Brasil levante ao mundo o estandarte da guerra. Só para contrariar.

A esse tipo de atitude supostamente independente dá-se o nome de submissão mental.

Ação e reação

As cabeças mais sensatas já perceberam e tentam convencer os companheiros do PT de que, se quiserem mesmo derrubar o ministro Aldo Rebelo da Coordenação Política, devem fazê-lo discreta e silenciosamente.

Já virou rotina: cada vez que o PT faz uma ofensiva, a operação torna-se pública e dá a Rebelo a chance de confrontar os petistas abertamente. Com isso, ganha solidariedade e sobrevida no cargo.

Aconteceu há cerca de dois meses quando, na reforma ministerial, o PT cobrou a saída dele. O ministro ligou para o presidente do partido, pediu satisfações e José Genoino foi obrigado a dizer que não era nada disso.

Agora, o ministro Luiz Gushiken praticamente pediu a demissão de Rebelo em entrevista e, de novo, o ministro tripudiou: chamou de "exóticas" as declarações de Gushiken e ainda ironizou a pretensão do PT de assumir seu 19.º ministério.

Ou seja, se alguém está com problemas no quesito habilidade política definitivamente não é Aldo Rebelo.