Título: Servidão, vantagem comparativa?
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/05/2005, Economia, p. B2

Quase um século e meio depois da Guerra de Secessão nos Estados Unidos e 117 anos depois da assinatura da Lei Áurea no Brasil, o combate ao trabalho forçado permanece como uma das prioridades da Organização Internacional do Trabalho (OIT). A boa novidade para os brasileiros é que seu país aparece como um bom exemplo, "merecedor de destaque", no relatório divulgado nesta quarta-feira pela OIT em Genebra. O governo federal, segundo o informe, vem agindo com maior eficiência para eliminar o trabalho forçado. A libertação de 4.932 trabalhadores em 2003 e a abertura de 633 investigações entre fevereiro de 2003 e maio de 2004 são indicadores desse esforço.

O cenário mundial é humilhante. Há pelo menos 12,3 milhões de pessoas sujeitas a trabalho forçado em todo o mundo, de acordo com o relatório. A exploração de homens, mulheres e crianças vítimas de tráfico gera um lucro anual estimado em US$ 32 bilhões. Nenhuma região está livre dessa mancha: há 360 mil pessoas escravizadas no mundo industrializado, 660 mil na África Subsaariana, 9,5 milhões na região da Ásia-Pacífico, 1,3 milhão na América Latina e no Caribe, segundo o estudo. Quase metade do lucro gerado pelo tráfico é obtido no mundo rico: US$ 15,5 bilhões.

A servidão é a forma principal do trabalho forçado na Ásia-Pacífico, envolve 8,1 milhões de pessoas e é encontrado principalmente, de acordo com o informe, na Índia, no Nepal e no Paquistão. As vítimas são mantidas em condição servil principalmente pelo endividamento. Os dados sobre a China são escassos. O estudo menciona a migração do campo para as cidades como uma das fontes principais de trabalho forçado na economia chinesa, mas há pouco espaço dedicado ao tema, provavelmente por ser difícil o acesso a informações.

Não está claro, no relatório, até que ponto a exploração do trabalho nas "sweatshops", fábricas onde se trabalha até 15 horas por dia, 7 dias por semana, é levada em conta na avaliação do trabalho servil chinês. A questão não é simples, porque a superexploração do trabalho nas indústrias chinesas é em parte facilitado pela grande oferta de mão-de-obra. Dessa perspectiva, a baixa remuneração e as condições desfavoráveis são atribuíveis a uma característica do mercado.

Mas o mercado é apenas parte da resposta. As leis trabalhistas chinesas têm pouca eficácia, o sindicalismo não é livre e as manifestações de protesto, quando não sufocadas no interior das empresas, acabam sendo, com freqüência, punidas severamente pelas autoridades.

O site da organização China Labour Watch, com sede nos Estados Unidos, apresenta dados interessantes levantados com meios próprios e também reportagens publicadas pela imprensa internacional. As informações mostram que há algo mais, no baixíssimo custo da mão-de-obra chinesa, do que a mera vantagem comparativa de um país com um grande exército industrial de reserva.

Os negociadores do Brasil e de outros países em desenvolvimento vêm resistindo à inclusão das chamadas cláusulas sociais nos acordos internacionais de comércio. Cláusulas desse tipo, segundo argumentam, podem ser utilizadas como instrumentos protecionistas pelos governos do mundo rico. A oposição dos sindicatos americanos à aprovação do acordo entre seu país e o centro-americanos mostra que o perigo não é imaginário.

Mão-de-obra barata pode ser uma vantagem comparativa legítima, no comércio internacional, desde que respeitados certos valores consagrados internacionalmente, como a liberdade pessoal e a liberdade de organização. O grande problema, numa negociação, é determinar as condições mínimas que todo país deva observar e garantir que nenhum requisito adicional seja alegável como base para uma ação defensiva.

O crescente peso da China, do Paquistão e de várias economias da Ásia no comércio internacional pode justificar um novo enfoque do assunto pelos governos do Brasil e de outros emergentes.

O governo brasileiro vem-se esforçando, há vários anos, para eliminar a vergonha do trabalho forçado em alguns bolsões de sua agropecuária, especialmente na região Amazônica. Essa mancha política e moral é sobretudo um fator de risco para um agronegócio que já mostrou seu poder de competição. Quanto mais limpas as suas condições de produção, mais seguro será o status do Brasil no mercado internacional.

No caso da indústria, o interesse objetivo do Brasil é que a China e outros países da Ásia adotem padrões trabalhistas mais parecidos com os do Ocidente - e que esses padrões sejam cobráveis internacionalmente. Traduzir esse interesse em ação política é um problema aberto. Apressar-se no reconhecimento da China como economia de mercado não parece o passo mais acertado.