Título: Os moderados
Autor: Denis Lerrer Rosenfield
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Infelizmente, a imprensa e a mídia em geral não estão dando a devida atenção aos documentos relativos à preparação do encontro nacional de setembro, quando será eleito o próximo presidente do PT. Há toda uma outra realidade em curso que determina a situação atual e permanece fora dos holofotes públicos. Essa realidade, porém, encaminha desdobramentos possíveis do governo, onde se enfrentam dirigentes partidários de todas as tendências, compartilhando concepções e idéias, para além de suas divergências. O PT é o laboratório do que se faz no governo. Os documentos preparatórios envolvem toda uma discussão relativa aos rumos do governo petista e à sua fidelidade ou não aos princípios partidários. O tom e o vocabulário utilizados nesses textos fazem lembrar as discussões marxistas do início do século 20, aliás, explicitamente mencionadas na crítica que a Articulação de Esquerda faz ao documento do Campo Majoritário. Por exemplo, o texto considera que, em âmbito internacional, estaríamos vivendo um momento semelhante ao "final do século XIX, quando o capitalismo entrou numa nova fase, para o qual Marx era fundamental, mas não suficiente".

Segue-se uma lista de pensadores de orientação marxista que pensaram a situação, como Kautsky, Bernstein, Rosa Luxemburgo, Hilferding, Bukharin e Lenin. Do ponto de vista atual, estaríamos numa conjuntura análoga pelo "fato de estarmos vivendo, no Brasil e na América Latina, uma situação semelhante à do início do século XX", que clamaria por pensadores e uma política revolucionária do mesmo tipo.

Ressalte-se particularmente o imaginário social e político no qual estão imersos esses interlocutores e o PT como um todo, inclusive aqueles que procuram se demarcar de uma posição deste tipo. Se os conceitos nos quais se move o partido são estes, não deveríamos ficar espantados com a esquizofrenia e as incoerências entre o governo e suas posições partidárias históricas.

O problema se torna mais agudo, ademais, pelo fato de que correntes ditas moderadas, como o Movimento PT, que lança a deputada Maria do Rosário à direção nacional do partido, compartilham as mesmas concepções, embora adotem táticas diferentes. Se os moderados se situam dentro do mesmo espectro dessa tradição autoritária de esquerda, procurando reviver a questão da revolução como se estivéssemos nos primórdios da Revolução Russa, cabe a pergunta do que se entende mesmo por "moderados".

O Movimento PT é uma tendência dita pertencente ao "centro" do espectro partidário, sendo assim normalmente considerada pelos formadores de opinião. Na verdade, quando se aceita uma tal denominação, está-se admitindo uma qualificação nascida do debate partidário interno, pouco ancorada na realidade quando se sai do claustro partidário para a cena pública democrática, que segue outros critérios.

O que é "moderado" para um partido de esquerda não é "moderado" para uma sociedade de mercado, fundada na democracia representativa. O que é de "centro" numa disputa partidária que se move dentro de um reduzido espectro de idéias não o é para uma sociedade que preze os valores da liberdade política, da liberdade civil e da liberdade econômica. Ocorre aqui uma deformação da opinião pública. O que é moderado numa perspectiva se torna radical em outra.

A fidelidade aos princípios socialistas nesta e em outras tendências do PT é claramente afirmada. Por exemplo, o PT deveria pautar-se pelos "princípios e compromissos históricos de construir uma sociedade justa, fraterna e - sem medo de ser feliz - rumo à utopia socialista". Ora, o problema reside no que se entende por "sociedade justa e fraterna", sobretudo se vinculada à "utopia socialista", pois o linguajar aparentemente justo sinaliza para a injustiça.

É como se o socialismo fosse identificado com a idéia de sociedade justa, como se o socialismo fosse uma idéia moral, e não uma sociedade real, fruto da luta pelo poder. Num procedimento típico da esquerda brasileira, um ideal de tipo moral ou religioso, que só existe no nível das idéias, é erigido em valor absoluto, pelo qual toda realidade existente se deveria medir, como se esse ideal não devesse ser ele mesmo concretizado ou já o tivesse sido no passado, como é o caso das experiências socialistas e comunistas. Pelo menos o ex-deputado Tilden Santiago, embaixador brasileiro em Cuba, teve, numa declaração feita no dia mesmo do encontro nacional dessa tendência, o mérito da honestidade ao dizer que o "socialismo democrático" é o "socialismo cubano".

A idéia estaria, então, exemplificada historicamente, ela estaria identificada com o "socialismo real", aquele que se caracteriza pela ausência dos valores morais, pelo mais absoluto desrespeito aos "direitos humanos", pela brutal repressão aos opositores, pela negação do mais elementar direito de ir-e-vir, como se sair do país fosse um ato de alta traição.

O problema do PT como um todo consiste em como conciliar o inconciliável, a defesa de um governo inserido numa economia de mercado, que segue os princípios da democracia representativa, com um projeto socialista que visa a subverter essas mesmas condições e esses princípios.

Como conciliar, então, um governo que se orgulha de uma pauta exportadora, que muito deve ao agronegócio e aos setores mais modernos (e capitalistas) da indústria, do comércio e dos serviços, com um governo de transição para o socialismo, que se pautaria pela eliminação da concorrência e pela condenação da liberdade.