Título: Usbequistão: 500 corpos enfileirados
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Fonte: O Estado de São Paulo, 16/05/2005, Internacional, p. A8

Cadáveres de vítimas de repressão são expostos para identificação em Andijan; grupo mata soldados e foge para o Quirguistão

Cerca de 500 corpos de usbeques mortos na repressão policial durante os protestos de sexta-feira foram perfilados ontem numa escola de Andijan, leste do Usbequistão, para identificação de seus parentes, informou um médico para a agência Associated Press, pedindo anonimato. O informante disse também que grupos de homens armados mataram ontem vários soldados do Exército usbeque no povoado Tefektosh e fugiram para o Quirguistão. Com a atuação limitada pelo governo usbeque desde o início da crise, repórteres não conseguiram confirmar se houve combates naquela região, mas, segundo uma testemunha, havia manchas de sangue nas ruas da cidade. Tefektosh localiza-se na mesma região, onde os soldados disparam na sexta-feira contra manifestantes, sob o argumento de que era preciso neutralizar uma rebelião. A multidão havia libertado cerca de 2 mil presos de uma penitenciária local, entre eles 23 comerciantes acusados de pertencer ao grupo islâmico Akramia - vinculados ao proscrito Hizb ut-Tahrir. Esse partido tem como principal objetivo criar um Estado islâmico que envolveria toda a Ásia Central e parte da Rússia.

O presidente usbeque, Islam Karimov, atribuiu a extremistas islâmicos o que classificou de "insurreição em Andijan", a quarta maior cidade da ex-república soviética. "Era preciso neutralizar essa tentativa", disse ele, tentando justificar a violenta repressão. Testemunhas relataram que as tropas de Karimov, que tem um amplo histórico de repressão contra muçulmanos, dispararam indiscriminadamente suas armas contra a multidão, matando dezenas de mulheres e crianças. O presidente da Organização de Direitos Humanos do Usbequistão, Lutfulo Shamsutdinov, disse ter visto pelo menos 200 corpos sendo lançados em vários caminhões militares logo depois que a polícia dissolveu o protesto. Cerca de 2 mil pessoas ficaram feridas, lotando os hospitais da região. No sábado, moradores da cidade lavavam indignados o sangue derramado na praça.

Segundo o presidente usbeque, pelo menos dez soldados foram mortos durante os distúrbios. Karimov disse que seus representantes tentaram negociar com os manifestantes, antes de dispersá-los. "Ativistas vindos do Quisguistão figuravam entre os organizadores do protesto em Andijan e suas exigências eram inaceitáveis", acrescentou o presidente usbeque. Protestos semelhantes no Quirguistão acabaram levando o presidente Askar Akayev a fugir do país e a renunciar poucos dias depois. Andijan fica no volátil vale de Fergana, onde há um expressivo movimento islâmico que vive em choque com o governo secular de Karimov.

Vários jornalistas estrangeiros foram detidos na madrugada de sábado e, depois, receberam ordens expressas para abandonar imediatamente a cidade.

Ontem, a praça onde ocorreram os incidentes estava completamente vazia, informou por telefone à Associated Press um morador da cidade. Mas a situação continuava tensa em Andijan, que começava a enterrar seus mortos. Pela manhã, mais de 5 mil usbeques tentaram refugiar-se no Quirguistão, mas foram interceptados por guardas fronteiriços e tiveram de retornar, acampando na região de Korasuv. Segundo testemunhas, muitos dos usbeques que tentaram deixar o país depredaram vários prédios do governo no trajeto de 50 quilômetros entre Andijan e a fronteira com o Quirguistão.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, telefonou para o colega Karimov, manifestando grande preocupação pela tensa situação no Usbequistão. O líder russo advertiu que a crise usbeque ameaça desestabilizar toda a Ásia Central.