Título: Excelentes ex-presidentes
Autor: Mauro Chaves
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Fernando Henrique Cardoso não foi nada feliz ao dizer, em entrevista (à Revista Conjuntura Econômica, da FGV), que "está começando a haver o esgarçamento do processo de legitimação" (do poder político no Brasil), o que pode desaguar numa crise institucional. E que "isso aconteceu na Venezuela, na época do Andrés Perez, no Peru, antes e durante o governo de Alberto Fujimori, na Bolívia, no Equador, na Argentina e, no Brasil, na época de Jango". Com todo o seu vasto preparo intelectual, sua respeitabilidade de scholar e a experiência adquirida em dois mandatos presidenciais, FHC não deveria dizer temeridades desse quilate, mostrando um catastrofismo que sempre condenou. Ele sabe muito bem que não é o fato de este governo se estar revelando o mais desarticulado da História da República, não é a circunstância de hoje se desperdiçar, mais do que nunca, o dinheiro do cidadão contribuinte, nem é a cada vez mais vexaminosa exibição de despreparo gerencial de nosso chefe de Estado e de governo que fazem a sociedade brasileira correr algum risco de retrocesso institucional. Pois a democracia, no Brasil, se fortaleceu a ponto de se tornar à prova de qualquer incompetência governamental - e FHC sabe disso, melhor do que ninguém. A esta altura, falar em ameaça de crise institucional é leviandade inaceitável, que em nada contribui para a tranqüila perspectiva de alternância do poder, num ano pré-eleitoral. Mesmo porque só faltam 19 meses e meio.

A fala de FHC pegou muito mal, especialmente porque, há pouco tempo, sempre que indagado se era candidato a presidente em 2006, dizia ele que só o seria na hipótese de a situação do País se tornar um caos - ou seja, valia-lhe o lema "aprés le déluge, moi". Não faltará, então, quem lhe atribua a intenção de provocar o caos para dele obter vantagens eleitorais. Como, com toda a certeza, a intenção de FHC é fazer o melhor que pode em benefício da sociedade brasileira, a tática a usar, em relação a Lula, poderia ser bem diferente. FHC deveria revelar a Lula o que descobriu nestes últimos dois anos e meio, ou seja: o conforto, o prazer, a delícia de se ser ex-presidente da República. Nada melhor do que, sem nenhum peso de responsabilidade governamental sobre os ombros, fazer palestras pelo mundo afora e com elas arrecadar polpudos cobres, ser aplaudido em teatros, cinemas, lugares públicos, ser cumprimentado efusivamente em restaurantes - no Brasil e no exterior - sem ter de enfrentar políticos fisiológicos, chantagistas partidários, lobistas corporativos, áulicos palacianos e chatos de toda espécie.

Há dois modelos de ex-presidentes da República. O primeiro, mais ideológico, é o adotado pelo melhor ex-presidente norte-americano - Jimmy Carter, a grande referência mundial no campo dos direitos humanos. O outro, mais de resultados, é o de Bill Clinton - apto a arrecadar fortunas de remuneração em palestras institucionais, acadêmicas ou empresariais. FHC incorporou este último modelo, com grande sucesso. Certamente Lula se adaptaria bem ao primeiro modelo - exercendo, em relação ao combate à fome, papel semelhante ao que Carter exerce quanto aos direitos humanos -, mas poderia misturá-lo um pouco com o segundo, para também conseguir boa remuneração (posto que ninguém é de ferro).

Se Lula dedicou mais da metade de seu tempo (como confessou na recente Cúpula das Arábias) à "política externa" exercida in loco, pelo que deve ter batido um recorde de horas de vôo em avião presidencial, sem dúvida, para ele, essa tem sido (juntamente com os churrascos, peladas e canjebrinas) a parte mais deliciosa do cargo que exerce. Então, aproveitando o prestígio de sua imagem pessoal no exterior (que sempre será a do heróico operário que chegou ao paraíso presidencial), por que não ficar apenas com o bônus (sem ônus) do marketing internacional, ajudando no aumento de cordialidade de relacionamento do País, especialmente com os países do Terceiro Mundo? E lhe seria fácil obter, de seu sucessor, missões dessa espécie.

Com certeza, se FHC soubesse que se daria tão bem em sua função de ex-presidente, ter-se-ia empenhado mais, na última eleição presidencial, em favor do candidato de seu partido, José Serra - e não se mostraria tão eufórico com a vitória de Lula, por saber que adquirira, com a eleição do petista, melhores condições de voltar ao poder. Mas, ao conhecer, hoje, todo o sabor da amena (e opulenta) ex-presidencialidade, pela cabeça de FHC não passa mais ambição alguma de participar de eleições como candidato. No máximo, participará como poderoso eleitor. Agora, se FHC conseguisse transmitir a Lula, hoje, todo o prazer de seu desfrute ex-presidencial, até a primeira dama, dona Marisa, convenceria suas amigas a colocar em seus carros um adesivo com o slogan: "Lula para ex-presidente." Talvez Lula não consiga, como ex-presidente, ganhar os cerca de R$ 150 mil que FHC cobra por palestra - mas conseguirá, pelo menos, uns R$ 30 mil. E os dois ex-presidentes, que sempre se deram bem, pessoalmente, até poderiam inovar, fazendo palestras em dupla - numa demonstração do vigor da pluralidade democrática brasileira. Nesse caso, FHC lucraria, por contar com a abertura de portas no Terceiro Mundo, enquanto Lula lucraria com a elevação de status da palestra e um possível cachê duplo - a ser rachado entre os dois excelentes ex-presidentes.