Título: 'Eles é que mandam'
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2005, Editoriais, p. A3

Se o principal objetivo do Movimento dos Sem-Terra (MST) era dar uma exuberante demonstração de seu poder de organização, com a grande marcha de quase 200 quilômetros, de 12 mil pessoas, que termina amanhã, em Brasília, seu êxito é total e impressionante. A disciplina rígida, a obediência à hierarquia, a distribuição de tarefas pelas "brigadas" e toda a logística empregada nesse enorme deslocamento de pessoas pela Rodovia BR-060 só têm paralelo com serviços de intendência de modernos exércitos em guerra, embora poucos disporão de recursos como caminhões-pipa, banheiros químicos e cozinhas sofisticadas como as de que dispõe a tropa do MST. Antes de iniciar a grande marcha "contra o Palocci", o MST treinou, durante 11 meses, 3 mil militantes, em 23 Estados, para que assumissem o comando dos "marchantes" e a infra-estrutura logística da mobilização. Fixaram-se para os militantes padrões rígidos de comportamento. Os "marchantes" não podem, por exemplo, dar qualquer entrevista sem a presença de um coordenador, nem consumir bebidas alcoólicas de qualquer espécie, nem participar de discussões ou brigas.

1.200 pessoas integram 23 equipes de cozinheiros, encarregados de produzir 22 mil marmitas por dia (distribuídas em três refeições diárias) e cozinhar conforme o costume alimentar de cada Estado. Há 10 caminhões-pipa, que fornecem 250 mil litros por dia. São gastos 100 botijões de gás por dia, em 115 fogões industriais. A equipe de higiene cuida dos 100 banheiros químicos (transportados por 3 caminhões) e organiza o banho dos militantes. Na marcha foram montados acampamentos a cada 20 quilômetros, por uma equipe de infra-estrutura de 350 integrantes, que dispõem de 24 caminhões para o transporte de 12 barracas com capacidade para 600 pessoas e 20 barracas para 200 pessoas. 30 ônibus - para transportar os "marchantes" para o ponto de partida da marcha foram mobilizados 400 ônibus - levam 130 crianças, idosos e mulheres grávidas.

Há 8 ambulâncias e o atendimento médico é de 50 casos por dia. A brigada da segurança tem 300 militantes, identificados pelo colete vermelho. Cuidam eles de manter a fila dos "marchantes" nas estradas, abordar todos os que param durante a caminhada e, também, evitar a infiltração de estranhos. Na estrada os caminhantes têm que usar "uniformes" - camisetas e bonés vermelhos com o logotipo do MST, ou chapéus de palha padronizados (sempre novinhos), portando 4 mil bandeiras da entidade, além do Pavilhão Nacional e uma outra bandeira estampada com a face de Che Guevara.

Talvez o "departamento" mais sofisticado do movimento seja o da comunicação, visto que o MST instalou uma radioemissora em um dos três caminhões de som que acompanham a marcha. Como os "marchantes" levam um rádio portátil - parte do kit que receberam, em mochila com caderno, caneta, cartilha da reforma agrária e livros de Karl Marx, Lenin e Florestan Fernandes, entre outros -, sintonizam a emissora para ouvir músicas, manifestações de apoio e, especialmente, mensagens e ordens de comando dos coordenadores. Diariamente, nas paradas para descanso, há a sessão de doutrinamento.

Tudo isso é pago com recursos de variada procedência. Houve os generosos fornecimentos do governo do Estado de Goiás e da prefeitura de Goiânia. Houve ajuda das prefeituras dos municípios pelos quais passou a marcha, e até o apoio de fazendeiros - o que parece um pagamento de "pedágio" ou "compra de proteção" semelhante ao que se fazia nos sertões nordestinos, para livrar-se dos grandes cangaceiros, como Lampião e Corisco. Há os não menos generosos recursos disponibilizados pelo governo federal, a título de ajuda a assentados, e os apoios (materiais e/ou institucionais) de ONGs, nacionais e estrangeiras, além de setores da Igreja Católica do Brasil.

Contudo, a maior demonstração da força do MST está bem sintetizada por um policial (da Policia Rodoviária Federal, que acompanha o deslocamento desde Goiânia e não interferiu nem quando o grupo rebentou cercas e invadiu fazendas, para pernoite) quando disse: "Não temos voz de comando nem somos autoridade aqui. Pelo volume de pessoas, fica fora do nosso controle. Eles é que mandam." É preciso dizer mais?