Título: A ganância exposta
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2005, Editoriais, p. A3

Com o que talvez tenham sido, metaforicamente, as suas últimas palavras na condição de titular da Coordenação Política, o ministro Aldo Rebelo, do PC do B - um dos mais discretos, pacientes e disciplinados colaboradores do presidente Lula -, falou abertamente anteontem da fome de poder do partido que há muitos meses vem tentando defenestrá-lo, para substituí-lo por um dos seus. "Se o PT julga que os 19 ministérios que ocupa são insuficientes, tem o direito de reivindicar mais um", disse, com um sorriso, para emendar: "Mas eu penso que mais um ministério para o PT não vai resolver o problema da base do governo. Ao contrário, o PT precisa ceder espaço." O comentário, com o qual concordará quem quer que conheça as atribulações que se acumulam no trato entre o Planalto e as legendas aliadas, foi suscitado por uma inesperada manifestação de outro ministro que costuma primar pela circunspecção, o da Comunicação do Governo, Luiz Gushiken. Dias atrás, ele afirmou que seria "mais normal" que o principal partido da coalizão dominante controlasse a articulação política do Executivo. Ao que se saiba, Gushiken, o mais íntimo assessor do presidente, nunca fez um comentário público sobre assuntos de governo, à sua revelia ou que pudesse constrangê-lo.

Por isso, a sua teoria do "mais normal" foi entendida como sinal inequívoco de que Lula enfim se rendeu às pressões dos companheiros para fazer o que hesitava em fazer: devolver formalmente o comando das negociações políticas do governo ao chefe da Casa Civil, José Dirceu, ou entregá-las a um terceiro, desde que petista. Em breve se saberá se Gushiken estava ou não autorizado por Lula a fazer as declarações que Rebelo, em tom de fina reprimenda, considerou "exóticas", por serem, explicou, o comentário de um ministro sobre a função de outro. No fundo, ele não há de ter se espantado com a estocada aparentemente letal de Gushiken, dada a sua antiga familiaridade com o "jeito petista de ser".

Paradoxalmente, o desgaste que tem sofrido - exagerado até para os padrões petistas - tem servido para fortalecê-lo junto aos líderes aliados. "É um absurdo a humilhação a que estão submetendo um ministro competente como o Aldo", protestou o presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB oficialista. Até o líder do governo na Casa, Aloizio Mercadante, se associou ao desagravo. "Não vejo como isso (a permanência de ministros) possa ser da competência de outro ministro", criticou. Mesmo que Rebelo tivesse fracassado por culpa própria - e não porque o Planalto lhe sonegou (ou não pode dar) os meios para ter sucesso -, a sua interminável fritura é uma ignomínia.

Esse tratamento pôs em evidência, de forma absolutamente crua, sem que a oposição precisasse mover uma palha para tal, o que outro dirigente do bloco majoritário, o líder do PSB, deputado Renato Casagrande, denominou, em português claro, "a ganância do PT" - que lhe custou, entre outros dissabores, a acachapante eleição de Severino Cavalcanti na Câmara. Passados dois anos e meio de uma eleição que deu a Lula a Presidência e ao seu partido muitíssimo menos votos do que os necessários para mandar e desmandar no Congresso, nem um nem outro conseguiram compor uma coalizão estável e funcional. A mais importante causa singular disso é a fobia do PT a "ceder espaço", como diria Rebelo.

Lula já se queixou várias vezes de que o PT o atrapalha, não bastasse a avidez insatisfeita dos políticos da base. Mas o partido não se enquadra, mesmo sob o argumento ad terrorem do ministro Dirceu de que, sem a aliança desejada, o presidente poderia desistir de 2006. O episódio da chantagem severina que fulminou a reforma ministerial tem obscurecido o fato de que ela se arrastava havia meses e ia se esvaziando, em boa parte porque os petistas se recusavam a entregar os anéis. Depois, tudo piorou para o governo no Congresso. A situação faz lembrar o ditado que diz que os problemas mais complexos têm uma solução simples - e errada.

Parece simples resolver o problema da base trocando Rebelo por Dirceu, mas não é. Ainda que a sua caneta contenha a tinta negada à do outro, a troca só comprovará que o PT não abre mão de ser mais igual que os iguais. Nesse caso, a qualquer indício de incerteza da reeleição, para mais de um aliado a tentação da debandada poderá se tornar irresistível.