Título: Desgaste contagia e não tem cura
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/05/2005, Nacional, p. A6

Os momentos, os casos e os detalhes são diferentes, mas as posições do governo em relação ao presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, e ao ministro da Previdência, Romero Jucá, têm sido exatamente iguais. Primeiro, o presidente da República atribuiu as denúncias a ímpetos eleitorais da oposição; depois, Luiz Inácio da Silva comunicou que não se comove com notícia de jornal; em seguida, indicou disposição de esperar as manifestações do Ministério Público e do Supremo Tribunal Federal.

Agora, ante o exposto por essas autoridades - a confirmação de que as acusações são passíveis de investigação, existindo, portanto, indícios de culpa e possibilidade de condenação -, o governo alega necessidade de aguardar uma sentença final da Justiça a fim de não cometer injustiças com possíveis inocentes.

Os envolvidos, por seus lados, parecem ensaiados nas reações: ambos consideraram "extremamente positivo" o fato de o Supremo Tribunal Federal ter autorizado abertura de inquérito criminal contra Henrique Meirelles e o Ministério Público Federal ter pedido ao STF o mesmo em relação a Romero Jucá.

O presidente do BC e o ministro da Previdência alegam tranqüilidade e segurança, pois, segundo eles, agora sim as denúncias serão examinadas em foro apropriado, isento de motivações políticas.

A evidência da inversão de valores contidas nas posições do governo e dos ministros é clara. Começando pela versão combinada de Meirelles e Jucá, nada há de "positivo" para eles nos atos do STF e do procurador-geral da República.

As ações embutem a presunção de responsabilidade e são expressas por duas instâncias definidas pelos próprios envolvidos como adequadas e desprovidas de injunções de natureza estranha à lei. Ora, se são confiáveis, confiança há em suas decisões que, por isso mesmo, devem ser observadas à luz de seu significado real e não sob a ótica de sofismas e declarações pautadas na orientação de advogados.

A mesma lógica aplica-se à posição formal do governo de procurar transparecer uma indiferença, além de inexistente, absolutamente desconectada da perspectiva do cidadão. E esta indica o seguinte: se o Supremo pediu investigação e o Ministério Público solicitou apuração dos fatos por ele examinados, a interpretação é a de que houve um juízo de desconfiança plenamente justificada.

Isso não serve para a condenação de ninguém, mas põe a autoridade com responsabilidade pública sob suspeição e isso basta para que o exercício da função fique contaminado. Mais não seja pelo questionamento constante a que estarão submetidas.

Se nenhum peso tivesse a percepção da conduta imperfeita, o então presidente Fernando Collor teria completado seu mandato, porque o Parlamento não poderia abrir contra ele processo de impeachment antes que se pronunciasse a Justiça.

Numa outra coincidência de comportamentos, Jucá e Meirelles mostram-se à vontade em permanecer nos cargos por totalmente confiantes na decisão de Justiça.

Quanto à sentença final, realmente cabe apenas aguardar. No tocante ao conforto na permanência dos postos, contudo, se há sinceridade nas declarações dos ministros, são os únicos a achar que estão muito bem onde estão.

Aqui de fora parecem péssimos. Grudados aos postos, denotam empáfia ante a opinião pública. Se acreditam que ao resistirem sem um gesto, no mínimo de respeito e elegância, afastando-se ainda que temporariamente, demonstram convicção de inocência, equivocam-se.

Revelam antes a pretensão de usar a posse do poder como rede de proteção, mostram-se carentes de senso de limite, desgastam-se muito mais e abalam o governo por força do contágio. Mal, de resto, incurável.

Saindo a tempo - e, note-se, já vai vencendo o prazo dessa conveniência -, sempre têm a chance de voltar quando, e se, absolvidos pela Justiça e pela sociedade que saberia levar em conta o sinal de amor próprio e a demonstração de espírito público.

A questão por ora é política e, desse ponto de vista, ao não levarem em conta esse fator, Henrique Meirelles e Romero Jucá expõem-se a perder o benefício da dúvida.

PF na berlinda

Causa espécie o alívio do Palácio do Planalto com a decisão do ministro Marco Aurélio Mello de excluir a Polícia Federal do inquérito que investigará Henrique Meirelles.

Se o gáudio foi por excesso de confiança na excelência do trabalho da PF, soa a desconfiança em relação à inocência de Meirelles.

Caso o entusiasmo se dê pela suposição de que o sigilo de Justiça corre risco nas mãos dos federais, pior: temos o governo federal suspeitando da lisura da conduta de uma corporação a ele subordinada.

De qualquer forma, a reação desqualifica as constantes referências ao trabalho de PF como uma das áreas mais eficientes da administração federal. Ou bem há reconhecimento genuíno em relação às operações da polícia, ou o conforto diante de seu afastamento do inquérito significa que existem informações a respeito das quais a sociedade não tem acesso.