Título: Sobre a reforma da ONU
Autor: Celso Lafer
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Em março Kofi Annan submeteu à apreciação dos membros das Nações Unidas importante documento sobre as reformas da organização. Guiou-se pelo preâmbulo da Carta da ONU, que fala "de melhores condições de vida dentro de uma liberdade mais ampla", para discutir desenvolvimento, segurança e direitos humanos para todos. Buscou, assim, como responsável voz institucional da ONU, contribuir para as deliberações da cúpula de setembro próximo que avaliará, passados cinco anos, a implementação da Declaração do Milênio. Na análise do significado "de uma liberdade mais ampla", o secretário-geral elaborou a sua reflexão em torno da indivisibilidade e interdependência de três liberdades. A liberdade para viver sem medo - na qual trata do tema da paz -, a liberdade para viver sem miséria - na qual discute o desafio do desenvolvimento - e a liberdade para viver com dignidade - na qual afirma a importância dos direitos humanos.

A liberdade para viver sem medo requer um novo consenso sobre as ameaças contemporâneas, que hoje não se cingem aos riscos das guerras internacionais, mas dizem respeito, igualmente, à violência civil, ao crime organizado, ao terrorismo e às armas de destruição em massa. No trato destes desafios sugere vários caminhos. Entre eles, no plano institucional, um novo órgão intergovernamental da ONU, a Comissão de Construção da Paz.

Esta seria um fórum que reuniria o país que está sendo assistido, países doadores, países que contribuem com tropas, que em conjunto com líderes de outros Estados membros, instituições financeiras internacionais e organizações regionais coordenariam os esforços de todos os envolvidos para evitar a retomada dos conflitos, impeditivos da liberdade de viver sem medo. Uma comissão desse tipo seria muito útil, por exemplo, para lidar com a situação do Haiti, na qual o Brasil está envolvido com tropas.

É no âmbito destas questões sobre novos riscos e ameaças que se insere o tema do alargamento do Conselho de Segurança. Observo que este tema é o único que, em matéria de reforma da ONU, vem merecendo a concentrada atenção do Itamaraty na incessante campanha do atual chanceler para assegurar um assento permanente para o Brasil.

A liberdade para viver sem miséria trata do desafio do desenvolvimento. Nesta parte Kofi Annan propõe, inter alia, passos para a bem-sucedida implementação das Metas do Milênio, negociadas em 2002 na Conferência de Monterrey, e não esquece a relevância da sustentabilidade do desenvolvimento, consagrada na Rio-92. É neste contexto que o secretário-geral propõe um renovado papel para o Conselho Econômico e Social, como um fórum de alto nível voltado para cuidar da cooperação internacional para o desenvolvimento.

Dos assuntos tratados neste âmbito, o governo só vem dando atenção especial ao primeiro dos objetivos das Metas do Milênio, que é a erradicação da extrema pobreza e da fome, que se amolda às iniciativas diplomáticas do Fome Zero, propugnadas com entusiasmo pelo presidente.

Nos termos da Carta, a liberdade para viver com dignidade requer "promover e estimular o respeito aos direitos humanos". Assim, no documento, Kofi Annan historia a importante atuação da ONU, que levou à Declaração da ONU de 1948, aos dois pactos de 1966 (Direitos Civis e Políticos e Direitos Econômicos, Sociais e Culturais) - e a outros importantes tratados com os seus mecanismos de monitoramento. Realça a atuação do Alto Comissariado dos Direitos Humanos, criado na década de 1990.

Discute o papel da Comissão de Direitos Humanos e de seus procedimentos de análise do cumprimento das obrigações internacionais dos Estados neste campo. Registra, no entanto, que a autoridade da comissão vem sendo comprometida pelo declínio de sua credibilidade e seu profissionalismo. Para isso contribui o fato de que, atualmente, na disputa eleitoral para integrá-la, os Estados membros não se têm preocupado com a tutela dos direitos humanos, pois freqüentemente almejam a posição ou para se defender de críticas ou para criticar outros.

Para superar esta seletividade política a proposta institucional de Kofi Annan é substituir a Comissão de Direitos Humanos por um Conselho de Direitos Humanos, com um número menor de membros a serem eleitos pela maioria de dois terços da Assembléia-Geral.

O objetivo é dar aos direitos humanos a hierarquia e a legitimidade que a matéria exige, pois, como afirma Kofi Annan, nenhuma agenda de segurança e nenhum esforço em prol do desenvolvimento serão bem-sucedidos sem o lastro do respeito pela dignidade humana, que se expressa na afirmação dos direitos humanos. Observo que, nesta matéria, não se detectam maiores manifestações dos que, no atual governo, se ocupam da política externa brasileira.

Esta é uma grave omissão a ser corrigida, pois discutir ou não direitos humanos na reforma da ONU não é tema de livre escolha do Itamaraty. A Constituição de 1988, no seu artigo 4.º, estabelece entre os princípios que devem reger as relações internacionais do Brasil a "prevalência dos direitos humanos".

Este princípio, coerentemente, assinala na sistemática constitucional a passagem do regime autoritário para o Estado Democrático de Direito. Se as outras posições brasileiras têm ou não a devida abrangência, são as mais apropriadas, é matéria que comporta discussão que cabe fazer. Posicionar-se, no entanto, em relação à liberdade de viver com dignidade, na defesa dos direitos humanos, é uma obrigação constitucional que incumbe ao governo Lula e ao Itamaraty assumir.

Celso Lafer, professor titular da Faculdade de Direito da USP, foi ministro das Relações Exteriores no governo Fernando Henrique Cardoso