Título: Poder de vida e morte sobre a TV
Autor: João Carlos Saad
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

O debate sobre a concentração econômica raramente transborda além do limite do setor envolvido. Áridos, às vezes de difícil entendimento para o leigo, tais temas acabam não catalisando a atenção devida. E o cidadão paga a conta depois, diante do fato consumado. Tal está acontecendo na área de comunicações com a pretendida fusão Sky/Directv, operação já concluída nos EUA sob a batuta de Rudolf Murdoch, com desdobramentos definidos no Brasil. A autoridade de comunicações dos EUA, a Federal Communications Commission (FCC), atenta, tratou desde logo de impor medidas que impedem o veto deste gigante à efervescente indústria do entretenimento e garantem o surgimento de novos grupos em regiões remotas do país. Além, é claro, de determinar que Sky/Directv têm a obrigação de transportar todos os canais existentes e os futuros. De fato, a operação unitária pode fazer sentido econômico desde que não signifique a morte por asfixia de novos produtos e de novos empreendedores de mídia.

No Brasil, os eventos estão sendo coordenados para um desfecho não tão brilhante. Sob a inspiração monopolista das Organizações Globo, o que se desenha é um sistema pelo qual o dono do meio terá poder de vida ou morte sobre a produção cultural brasileira. Sócia da mexicana Telmex no cabo, hoje dona de quase 90% da Net, e parceira da Sky/Directv no satélite, as Organizações Globo detêm o comando e pretendem mandar no que o brasileiro pode ou não ver. Mal comparando, seria como se a concessionária de uma rodovia pudesse determinar qual carro trafega por ali, numa evidente distorção do que seria saudável para a concorrência, com benefícios para o público.

Mais do que uma briga envolvendo grupos de comunicação, o que está em jogo é o florescimento das manifestações culturais brasileiras e a garantia do pluralismo de opinião. Tome-se como exemplo a situação em países desenvolvidos onde a predominância de produção nacional é evidente e garantida por legislações rigorosas: 75% na França, 50% no Canadá, para citar apenas dois. No Brasil, ocorre o inverso: 75% de canais estrangeiros e 25% de canais brasileiros, num sistema caótico em que o interesse nacional nem passa perto.

Não por acaso, gente nova tem cada vez mais dificuldades em apresentar seu trabalho. São grupos nascentes que desempenham papel fundamental na revelação de novos talentos, gerando ousadia e inquietação.

Nesse quadro, a Globo, autoproclamada defensora do conteúdo nacional, tem desempenhado papel contrário: sua ação inibe e abafa a criatividade no País a partir do controle absoluto dos meios de distribuição. Matando essas iniciativas no nascedouro, sofre toda a cadeia de produção e desenvolvimento artístico: do DVD, passando pelo cinema, repercutindo, fatalmente, no empobrecimento da presença nacional na TV aberta. A Broadway não vive nem se renova sem a off-Broadway. É exatamente isto que estamos tratando de matar.

O ministro Gilberto Gil, expressão da diversidade cultural, talvez nunca tivesse tido espaço para cantar Domingo no Parque se tal modelo existisse no final dos anos 60.

A lei da TV a cabo limita em 49% o controle acionário em mãos estrangeiras. Estranhamente, porém, a lei não alcança o DTH, o sistema de TV por satélite, possibilitando que oportunistas façam o papel do Estado, escolhendo quem vai ou não sobreviver. No Brasil, tal papel de substituição do Estado está sendo tramado pela Globo, sócia minoritária de Murdoch e da Telmex no País. É evidente que o Poder Legislativo, bem como os órgãos que regulam a concorrência ainda não acordaram para esta ameaça à indústria nacional do entretenimento.

Para jornalistas, artistas e produtores, tal concentração significa redução de possibilidades de trabalho. E mais grave: significa restrição à diversidade de manifestações culturais e de opinião, fato preocupante quando recordamos o papel das Organizações Globo no escândalo da Proconsult em 82, da cobertura das diretas-já em 84 e na tristemente famosa edição do debate Lula-Collor no segundo turno da eleição de 1989.

A Associação Brasileira de Radiodifusores, que reúne SBT, RedeTV e Band, tem clareza de que a fusão Sky/Directv atingirá também a TV aberta, com grandes prejuízos para o telespectador. O que se pretende com a política do fato consumado é o avanço silencioso do monopólio, da opinião política e da ausência de debate. O assunto, de extrema gravidade, faz parte dos questionamentos diários da entidade. Saudável seria se a Abert, sigla que fala em nome da Globo, usasse parte de seu encontro esta semana em Brasília para discutir o tema, mesmo que esse monopólio intolerável esteja sendo praticado pela única televisão que restou na associação de um sócio só.

A bem da democracia e ainda confiando no bom senso das autoridades e dos responsáveis por esta decisão, acreditamos que a fusão Sky/Directv precisa ser submetida às regras que protegem a concorrência sadia de grupos empresariais e, sobretudo, garantam a preservação do interesse nacional no futuro das comunicações do Brasil.

João Carlos Saad é presidente da Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra)