Título: A discórdia além do veto
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2005, Nacional, p. A6

Olhando assim de repente parece um tanto exorbitante a reação irada do Congresso à negativa do presidente Luiz Inácio da Silva de sancionar projeto de lei de aumento de salários no Legislativo e Tribunal de Contas da União. Até seria, se a discórdia se resumisse ao veto. Do ponto de vista da administração de contas e pressões, a decisão faz todo o sentido. O presidente da República tem mesmo de zelar pela contenção de gastos e sabe ele muito bem que a demanda reprimida pelas condições objetivas do caixa, espremida pela expectativa da campanha eleitoral e oprimida pelas promessas não cumpridas, aguarda qualquer pretexto para explodir.

Em condições normais, não haveria motivo para o qüiproquó em cartaz.

O problema é que as condições não estão normais. Se estivessem, o Poder Executivo não precisaria se submeter ao constrangimento de vetar um projeto fruto de acordo avalizado pelos líderes do Palácio do Planalto, subscrito pelo PT.

A própria base de sustentação teria se encarregado de evitar firmar um acerto que, como diz o governo, renderá despesas extras no valor de quase R$ 600 milhões, de seis vezes menos no dizer do presidente do Senado, que se apresenta, inclusive, em condições de fazer frente sozinho a elas.

O senador Renan Calheiros afirma ter o dinheiro em caixa, produto de economias. Além disso, a desorganização política do esquema governista no Parlamento e a disposição à guerra dos deputados e senadores criam todas as condições para a derrubada do veto.

Qual é o drama, então? Pois é, o aumento em si não deve ser. Há muito mais que um mero pomo nessa discórdia, cuja sensação térmica é de temperatura elevadíssima.

O drama prende-se à forte suspeita de que o governo e o PT estejam, sem dizer que estão, executando um plano para contornar suas deficiências, recuperar o desgaste e aumentar suas condições de competitividade eleitoral, transferindo responsabilidades.

Em português claro: valer-se da intolerância popular com as distorções do Judiciário e as deformações do Legislativo para transparecer que residem em ambos suas dificuldades para governar.

Embora de grande risco, uma manobra desse tipo inclui seus cálculos. Se não reage, o Congresso faz como o Executivo quer e abafa a crise de comando.

Se fala muito alto, pode errar o tom e aí também dar ao Planalto argumentos para exibir-se refém da ganância por cargos, da vocação por privilégios e da ambição eleitoral dos que não querem dar a Luiz Inácio da Silva o tempo (dois mandatos) necessário à execução de sua obra.

Como há dados de realidade no jogo, não seria difícil tomar a parte pelo todo e com isso transformar em vantagem as desvantagens.

O veto a gastos é, em tese, uma causa justa - por mais injustificado que seja o governo romper acordo por ele mesmo firmado -, pois põe a culpa da gastança no Congresso, cujo histórico nessa seara dispensa apresentações.

As extravagâncias do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, também se prestam à perfeição a um cenário de desqualificação de condutas, já que nesse quesito suas excelências têm jurisprudência firmada na sociedade.

Junte-se a isso a paralisia dos trabalhos legislativos. Nada se vota porque a base governista obstrui as sessões por orientação do Palácio do Planalto, a fim de pressionar Severino a aceitar controle sobre a pauta.

Mas, como também no item "dolce far niente" os parlamentares têm contas públicas a prestar, acabam levando a fama desta vez - mas só desta vez - injusta.

Reza a tradição e ensina a História que o Executivo não costuma levar a melhor em confrontos com o Legislativo.

Governos sem apoio no Congresso não têm tido bom destino. Incentivar a opinião pública contra o Parlamento é aposta arriscada e talvez inútil.

Não só pela capacidade de reação e percepção de gente experimentadíssima no tema ali dentro, mas também porque, no tocante à imagem, a Casa não dispõe de muito a perder. Já o Planalto, se jogar nesses termos, só pode ser para ganhar.

Sem concorrência

Panorama eleitoral do quadro de disputa de 2006 visto da ponte governista: apesar de todos os pesares, o presidente Luiz Inácio da Silva não tem concorrente à altura e, sendo assim, resolvidos alguns desacertos com a população, está reeleito.

Anthony Garotinho, ainda que recupere condições de elegibilidade, é visto com certo receio, mas sem temor reverencial. A candidatura à esquerda da senadora Heloísa Helena, por essa avaliação, pode produzir algum barulho - pouco -, mas é só.

Adversários para valer, apenas os tucanos, cujos impedimentos são assim listados na visão do PT: José Serra não pode sair da Prefeitura, Geraldo Alckmin não empolga as massas, Aécio Neves vai para a reeleição no governo de Minas Gerais, Fernando Henrique Cardoso não se arriscaria a perder a eleição e, com a derrota, a majestade.

Pela análise petista, o PSDB obviamente algum candidato terá, mas não conseguirá unidade, articulação, discurso e, claro, votos suficientes para fazer dele o vitorioso.