Título: O Mercosul que cresce à revelia dos governos
Autor: Ariel Palacios
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2005, Nacional, p. A8

Existe uma relação do Brasil com a Argentina que cresce espetacularmente e que funciona à revelia dos dois governos, que vez por outra se estranham. Ela é construída por agentes não governamentais em áreas tão distintas como cinema, aprendizado da língua alheia e um fecundo intercâmbio acadêmico e intelectual, disse ao Estado a cientista política Mônica Hirst, brasileira que há vinte anos mudou-se para a Argentina e hoje ensina Relações Internacionais na prestigiada Universidad Torcuato di Tella, em Buenos Aires. Ela lembra que na história das relações bilaterais houve vários momentos em que um dos países projetava importantes transformações em sua política externa e reduzia o fluxo das relações com o outro, reacendendo a tradicional rivalidade regional. É o que acontece agora, afirma ela, quando o Brasil ensaia ousados vôos para amplificar suas projeções regional e mundial. Mônica admite que o uso da rivalidade como elemento de política interna, principalmente na proximidade de eleições, é um vício dos dois lados desde os anos 50.

A professora brasileira diz que, em Buenos Aires, nunca ouviu piadas de brasileiro e que, embora tenha sotaque - porque foi para a Argentina já adulta - dá aula normalmente, nunca sentiu qualquer rejeição e tudo o que observou até hoje é que os argentinos têm imenso interesse pelo Brasil. Na "espera" do telefone de seu escritório, trilhas com bossa nova revelam seu vínculo com o Brasil. "É meu cartão de visitas", diz. "Nossa cultura é muito querida aqui." Eis a entrevista:

Essa eletricidade toda nas relações Brasil-Argentina sempre existiu?

Na história da política externa brasileira, os momentos de grandes transformações sempre coincidiram com um distanciamento da Argentina, porque esses projetos nunca deixaram um espaço específico para deixar fluir o relacionamento. Isso aconteceu no início da vida republicana, com Rio Branco, na era Vargas (nos anos 30) e no governo Geisel. Curioso é que, em todas as situações, depois da tempestade veio a bonança. Depois que o Brasil se afirma com uma identidade internacional redefinida, brota a preocupação e a necessidade de criar uma agenda positiva com a Argentina. Isso também é verdade do lado argentino. Alguma coisa parecida está acontecendo agora, quando o Brasil se volta para novas projeções regionais e internacionais, e o lugar da Argentina nesse projeto ainda não está definido. Cada vez que isso acontece surge uma certa tensão por causa da histórica rivalidade geopolítica, natural em qualquer espaço regional.

Modernamente, quando começaram as diferenças?

O descompasso entre interesses econômicos, vinculados a um projeto de integração, e os projetos políticos de uma nova inserção internacional começaram nos anos 90. Essa diferença ficou evidente durante o primeiro governo Menem, quando a Argentina se alinhou aos EUA e se afastou do Brasil. Várias diferenças presentes naquela época estão de volta agora.

As elites dirigentes de Brasil e Argentina estão completamente convencidas de que o Mercosul é bom ou todo esse tempo a gente tem vivido uma fantasia?

Elas estão completamente convencidas de que o Mercosul é bom, mas não sabem como fazer o Mercosul funcionar de uma maneira mais estável e institucionalizada. Falta ainda aos dois lados incorporar a idéia de que delegar soberania não é perder poder de negociação. Nós ainda fazemos uma associação muito primária sobre as necessárias perdas de soberania na institucionalização de um processo de integração econômica. Mas os momentos difíceis, como este de agora, apesar de muito explorado pela mídia, não empolga nem a sociedade brasileira, nem a argentina.

É fato que as motivações brasileiras sempre foram mais estratégicas e as da Argentina mais econômicas?

Desde o início, a integração tinha, para o Brasil, motivações político-estratégicas, enquanto que para a Argentina ela tem um sentido econômico vital. Hoje, esta visão é consensual na Argentina.

O que melindra a alma argentina quando o Brasil busca novas projeções externas? O que fazer para apaziguar?

Uma visão comum no Brasil é que a percepção negativa do argentino sobre o atual momento da política externa brasileira é alimentada pela nostalgia do "passado glorioso", o que geraria uma espécie de inveja, que produz a hipotética uma má vontade da sociedade e do governo argentinos com o Brasil. Eu não compartilho dessa visão. Não nego que exista uma nostalgia na Argentina em relação a seu passado, mas não acho que essa seja a razão dessa dificuldade que a Argentina, sim, tem nesse momento de aceitar uma ação de maior protagonismo e liderança do Brasil na região e no cenário internacional. Ao contrário, o "passado glorioso" da Argentina é que lhe dá confiança para protestar por seus interesses. Por outro lado, é muito difícil para um país do porte regional da Argentina, aceitar um projeto de liderança do Brasil que não inclua a Argentina como parceiro. Não é tarefa fácil para a Argentina identificar, por conta própria, esse espaço. O Brasil precisa construir agenda positiva de relacionamento bilateral que atenue o custo dessa convivência.

As personalidades um tanto excêntricas dos nossos presidentes podem contaminar o processo?

O que existe é uma visão diferenciada. Nos primeiros dez anos do Mercosul, a diplomacia presidencial foi fundamental. A cada crise, os presidentes se reuniam ou se telefonavam. A idéia de não usar mais a diplomacia presidencial parece ser compartilhada pelos dois lados. Hoje em dia você não vê mais esse tipo de reuniões, que aconteciam com freqüência nos governos anteriores.

A rivalidade não é manipulada para alimentar a política interna?

A utilização da relação bilateral como tema de política interna é um vício usado pelos dois lados desde os anos 50, especialmente em épocas de eleições. Aqui na Argentina, no momento, existem duas visões sobre as relações com o Brasil dentro do próprio peronismo. Uma corrente, comandado pelo ex-presidente Eduardo Duhalde, é mais identificada com uma relação positiva com o Brasil, com um Mercosul ativo e com a idéia de que as assimetrias se corrigirão com o tempo. Outra tendência, comandada pelo presidente Néstor Kirchner, tem uma visão menos tolerante para com o Brasil. Se não houvesse essas alas dentro do peronismo, a divisão seria entre o peronismo e os radicais. Essa visão sempre aparece dentro da equação política argentina, cruzada com outras equações, como a relação com os EUA, a semelhança ou dessemelhança com o Chile. Do lado brasileiro, o problema acontece dentro do Itamaraty, com correntes mais tolerantes ou mais duras com a Argentina.

E fora dos governos, como a integração caminha?

Hoje existe uma quantidade que nunca houve antes de atores não-governamentais no Brasil e na Argentina que se relacionam, que se vinculam, que se conhecem, à revelia das políticas de Estado menos convergentes ou menos identificadas entre si. Esse movimento tem vida própria e não é afetado, como disse, pelos momentos mais tensos entre os dois governos.

Dê exemplos de áreas não governamentais em que a integração deslanchou.

Cinema, por exemplo. As áreas de produção, de direção e de política de gestão cinematográfica nos dois países estão totalmente vinculadas. Da mesma forma, cresce muito o interesse pelo aprendizado do português na Argentina e a expansão do ensino de espanhol no Brasil, com orientação platense. O Brasil tem sido muito conseqüente no apoio ao intercâmbio acadêmico e intelectual, com programas específicos voltados para a Argentina. Há uma quantidade de interações entre os dois países que nunca houve antes. Nas zonas de fronteira, por iniciativa dos ministérios da Educação dos dois países, foram criadas as escolas bilíngües. A integração pode emperrar um pouco na alta política, mas se expande na baixa política.

A senhora diz que existe uma integração real tocada por atores das duas sociedades?

Os processos de integração precisam de vontade política. Eles partem de visões estratégicas de governo, que devem se transformar em políticas de Estado, mas que só podem ser levados adiante com êxito quando as sociedades estabelecem um padrão de interação capaz de criar o território para isso se desenvolver. Integração é um processo voluntário, não acontece nunca mediante coerção e, num processo voluntário, é indispensável ter uma massa apta e dotada de percepção daquilo que a gente chama de interesse comum.