Título: O risco da Febem
Autor: Yeda S. Santos
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/05/2005, Metrópole, p. C6

O maior risco a que se submete a Febem diante das transformações pelas quais está passando é o de transferir e espalhar problemas. Entre eles, continuar sem perceber - e, portanto, sem aproveitar - o potencial criativo dos internos, o que poderia levá-los a deixar a criminalidade. Mas o pior ainda está na descentralização de unidades doentes, possibilitando que os mesmos males que acometem os grandes complexos possam instalar-se nos novos. Fora o reforço a atividades socioeducativas, nada foi detalhado sobre sua adaptação aos recrudescestes, seu real problema. Tampouco foi explicada a preparação do pessoal indicado para operar a mudança. Caso não sejam renovados os antigos e adaptados os novos funcionários, a questão disciplinar não se resolve, se transfere. Se buscasse aprender com a história, o governo não desmontaria unidades visando a melhorar a disciplina. Quando o Complexo Imigrantes foi desmontado para fazer frente ao impacto provocado pela mais terrível rebelião ocorrida no sistema, em 1999, os garotos foram amontoados no Tatuapé e em outras unidades: tiraram-nos de local superlotado, superlotando outros. Transferiram o problema sem reorientar a disciplina. Isso porque o mal vincula-se menos à superlotação indesejável, do que à qualidade do atendimento.

O diretor de Relações Coletivas do Sindicato dos Trabalhadores em Entidades de Assistência ao Menor e à Família do Estado de São Paulo (Sintraemfa), que congrega o sindicato dos trabalhadores na Febem, Antonio Gilberto da Silva, elogia o pequeno internato de Vila Conceição, na zona leste, onde trabalho multidisciplinar e individualizado com adolescentes e suas famílias aproxima atendentes e atendidos. Nos megainternatos, se cumprimenta o interno, o trabalhador é chamado de "paga pau" pelos companheiros, enquanto o interno é apontado como "peixe" pelos internados. Significa que tem favores da chefia.

Entre 2000 e 2001, o atendimento na UI-14 (seguro), no Tatuapé, deixou a desejar, mesmo nos períodos de baixa lotação. As equipes trabalhavam para conter o adolescente ao máximo, tornando tal atitude mais importante que as atividades socioeducativas. Prática que se mantém. Porém, quando devidamente abordado, o jovem responde à intervenção, como ocorreu na UI-14, no mesmo período. R., 18 anos, era jurado de morte pelos internos do seguro. Dizia ter tentado matar o próprio pai, contra o qual errou dois disparos. O homem foi amparado pela mãe do garoto. Seguiram-se outros crimes e, na Febem, era acusado de estupro contra um dos meninos. Por isso queriam matá-lo, seguindo a ética da cadeia, que não tolera o estuprador.

Na atividade "Boas Idéias para a Cidadania" (1999 - 2001), que atendeu cerca de 80 meninos, resolveu que seria "filósofo". Passou a ler os livros deixados pela orientadora da atividade. No dia da entrega do certificado de conclusão do curso juntou-se aos que queriam matá-lo, sem brigas de ambos os lados.

Todos haviam participado da mesma experiência socioeducativa. R.R., 18 anos, que dizia ter matado pela primeira vez aos 10 anos, resolveu, ao final do curso, que seria advogado. Os monitores que o ouviram, riram de sua pretensão para melhorar de vida, atitude que induziu o garoto a permanecer no estágio em que estava. Tal postura mostra que o funcionário não sabe como lidar com o crescimento do interno, por isso, o treinamento de novos e antigos funcionários é importante.

Apesar do bom resultado apresentado, a atividade foi suspensa pelo departamento que cuidava de atividades educacionais no Tatuapé, em junho de 2001, na semana seguinte à entrega dos certificados. Temia-se que a melhora dos meninos enfraquecesse a contenção que era aplicada pelo sistema. Silva reclama de "às vezes, não ter uma bola, um lápis, um livro" para dar aos garotos, mas diz que a proposta educacional caminha ao lado da "tranca coletiva". Para ele, os períodos de tranqüilidade na Febem são aqueles nos quais a direção foi "linha dura, atuou de forma impositiva, garantindo a tranca para reduzir o número de adolescentes no pátio", inibindo a possibilidade de rebeliões.

Em períodos eleitorais, o governo facilita a ocorrência de rebeliões com diretorias "light". Mais tarde "anuncia obras emergenciais, planos mirabolantes, com verbas suplementares, que nunca resolvem o problema". "Gente de carreira", sem experiência com infratores, orienta de forma equivocada a rotina dos internos, enquanto funcionários que trabalham na base "não são ouvidos".

O padre Julio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Menor, ressalta que "não existe um perfil único para o funcionário da Febem, mas o que não pode é ter ódio do garoto pois não se educa com ódio". Considerado tão vítima quanto o interno, o funcionário é submetido a situações de muita tensão, sem ser reciclado. Os internos deveriam ser aproveitados naquilo que têm de melhor, que é a vontade de aprender, absolutamente ignorada pela Febem.

O trânsito nessa via talvez seja dificultado pelo DNA da instituição, que é o "da ditadura militar: sem entender isso não é possível entender a Febem", diz o padre Lancellotti. A instituição foi criada em 1967. De adolescentes marginalizados em 1995, hoje, "instruídos pela mídia" sobre seus direitos estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, os infratores chegam à instituição "organizados e fortalecidos".

Embora sob a bandeira da aplicação de atividades socioeducativas como meio para a recuperação, o resgate do jovem ocorre quando percebe que está no caminho errado e tenta mudar o destino por si só ou quando está pouco envolvido com o crime, assusta-se com a Febem e decide não voltar. Os que estão realmente envolvidos com a criminalidade não encontram na Febem uma saída, pois ela não está preparada a para dar auxílio profissional.

Em março o padre e o sindicalista ouviram falar pela primeira vez sobre internos que estupraram mulheres que trabalham na instituição. Em 30 anos de envolvimento, padre Júlio se surpreende, considera "gravíssimo" o fato, um sinal de deterioração. "O estupro não acontecia pois é contra a ética deles", diz, sem saber o que teria motivado a mudança.

Para o padre, o presidente da Febem, Alexandre de Moraes, "tem tido vários acertos", como lutar contra a tortura e incentivar a abertura de entidades civis que apóiem a Fundação. O sindicalista Silva entende que ele "deu o tiro de misericórdia" na segurança da Febem quando permitiu que internos se organizassem para reivindicar e sugerir propostas à instituição. A Febem diz que a idéia foi sugerida por uma ONG, mas ainda está em análise.

Ao final, a espiral da exclusão se mantém: quem dirige os garotos não os conhece. Com eles não conversa, a não ser formalmente. Se o faz informalmente não acredita em suas súplicas. Se acredita nelas, não gosta nem suporta o que ouve pela carga de violência que traz. E, se as aceita, não sabe o que fazer com elas.