Título: Sinais de paz. Darfur pode ser salva?
Autor: Marc Lacey
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2005, Internacional, p. A18

Os soldados sudaneses e milicianos aliados que destruíram Darfur podem esvaziar um povoado inteiro em algo como 60 minutos. Eles atacam rapidamente nas primeiras horas da manhã, com seus cavalos e camelos em disparada, seus caminhões a toda velocidade, suas armas disparando. No espaço daquela uma hora calamitosa, eles eliminam o povoado, incendiando, violentando e matando com implacável eficiência.

Mas agora, com alguns dos primeiros tateantes sinais de paz se impondo na área, a questão é como, e mesmo se, a sua obra maligna pode ser desfeita.

Levará anos para saber a resposta. Mas já está ficando evidente para diplomatas e trabalhadores humanitários aqui que Darfur foi transformada de tal forma pela guerra que será difícil resolver seus problemas. Eles apontam para uma litania de problemas emergentes: redução do abastecimento de água; acirramento das disputas pela terra; animosidades tribais inflamadas; traumas psicossociais de estupro e deslocamento; e uma expressiva transferência de riqueza num lugar que sempre foi considerado, e ainda é, desesperadamente pobre.

A boa nova em Darfur é que ela tem estado calma ultimamente. A guerra entre o governo e dois grupos rebeldes da região - o conflito que desencadeou a desordem no começo de 2003 - se apaziguou nas últimas semanas. As negociações para encerrá-la estão programadas para recomeçar este mês, em meio a um crescente otimismo.

No entanto, uma Darfur mais calma é uma coisa relativa. Milicianos ferozes continuam governando o interior sem lei, e mesmo o fim da violência não conseguirá desfazer as transformações básicas, talvez inalteráveis, causadas pela guerra.

Quase 2 milhões de pessoas, a maioria de algumas tribos visadas, fugiram de seus lares para acampamentos de refugiados. Se os refugiados anteriores servirem de referência, muitos deles se recusarão a voltar para suas casas, tendo se acostumado à vida nos acampamento, com suas escolas, assistência médica e outras amenidades que não existiam em largas faixas da zona rural.

Outros foram fisgados pela vida urbana. Por toda a África, a agitação das cidades, pequenas e grandes, drena os jovens das aldeias. Em Darfur, pessoas desalojadas vivendo nas periferias das cidades viram televisão pela primeira vez. Elas fizeram compras em mercados. Para alguns, também, a vida numa aldeia remota perdeu seu encanto.

"Não creio que Darfur algum dia será como era", disse Maeve Murphy, uma trabalhadora em serviços comunitários do escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados. "As pessoas experimentaram os centros populosos e muitas ficarão neles, em particular as mais vulneráveis."

Organizações humanitárias já começaram a planejar como deslocar sua ajuda para a zona rural para atrair de volta pessoas desalojadas. Essa questão é acadêmica, por enquanto, pois guerreiros ferozes conhecidos como janjaweed, que causaram boa parte dos males em Darfur, continuam atacando os civis que ousam abandonar seus acampamentos, roubando suprimentos humanitários sempre que os encontram.

As tensões tribais estão mais inflamadas do que nunca. As tribos árabes nômades que participaram da destruição de Darfur há muito se desentenderam com seus vizinhos sedentários que costumam vir de tribos africanas. No caos dos últimos anos, os nômades foram encorajados a colocar seus rebanhos para pastar onde bem quisessem, uma fonte inevitável de tensão quando os agricultores voltam para seus campos.

Títulos de propriedade não existem por aqui. A propriedade da terra se baseia em laços ancestrais, mas é difícil fazer a tradição prevalecer depois que a população foi espalhada. Se houve um equilíbrio de poder que impedia as coisas de explodirem no passado - o medo de retaliação se alguém saísse da linha -, ele acabou. Agora os nômades têm armas e a crença de que Darfur é sua.

"Eles acham que a terra lhes pertence agora", disse Yahia Hassan Ibrahim, de 45 anos, um xeque que foi expulso de sua aldeia no oeste de Darfur por milícias árabes. "Eles dizem que a tomaram de nós."

Organizações humanitárias, que vinham despejando ajuda para tribos africanas, agora se perguntam se a sua atitude unilateral não teria aumentado as tensões ao alienar as tribos árabes nômades, muitas das quais não participaram da violência. Agora, elas pretendem estender a ajuda também às tribos nômades necessitadas, mesmo que parte dessa ajuda vá para os assassinos.

Se os nômades receberem ajuda alimentar, eles poderão parar de roubar dos moradores dos acampamentos. Considerar todos os nômades assassinos, muitos por aqui acreditam, é uma garantia de que a reconciliação jamais existirá.

Em outro esforço para atrair nômades para suas fileiras tradicionais, trabalhadores humanitários pretendem cavar poços ao longo de suas rotas tradicionais de migração. Dessa maneira, dizem, os árabes terão menos incentivo para vagar pelas terras agrícolas atrás de água.

A escassez de água, sempre um problema na esturricada Darfur, foi agravada pela guerra. Os poços das aldeias foram destruídos, e a congregação de milhares de refugiados nos acampamentos sobrecarregou o abastecimento de água local.

Restaurar algum equilíbrio de distribuição da renda será um enorme desafio também. As comunidades agredidas foram despojadas de todos seus bens, estoques de comida, rebanhos de gado e casas. O governo sudanês criou um comitê de compensação, mas poucos acreditam que Cartum fará disso uma prioridade

Por fim, há a questão do estupro, embora nesse ponto haja ao menos um desdobramento promissor. Muitas lideranças tribais manifestaram emoções díspares sobre aceitar os bebês que agora estão nascendo de mulheres que foram violentadas por membros da janjaweed. Mas, no acampamento de refugiados além da fronteira com o Chade, que abriga 200 mil pessoas, o Alto Comissariado para os Refugiados recentemente ajudou a firmar um acordo.

Foi uma espécie de anistia. Os anciãos tribais concordaram em não julgar as vítimas como desgarradas de sua religião e envolvidas em adultério ilegal ou sexo pré-marital. Elas devem ser bem recebidas por seus maridos e estão disponíveis para o casamento, decidiram os anciãos. Com esse decreto, muitas mulheres violentadas agora têm chance de participar da reconstrução de Darfur.