Título: Discutindo a relação
Autor: Luiz Weis
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

O apetite do PT pelo poder é maior do que a sua aptidão para a política - pelo menos como a entendem os políticos que não vieram ao mundo para mudá-lo, mas sem os quais nada se muda. Isso explica o atoleiro em que se enfiou o presidente Lula. O seu governo briga consigo mesmo, com os aliados de fé e com os de ocasião. O Planalto vem empilhando desavenças em série desde que o PT foi com dois candidatos para a eleição na Câmara dos Deputados, o que deu no que deu. O último tropeção foi a assombrosa tentativa do ministro Luiz Gushiken de imolar em público o seu homólogo Aldo Rebelo - aumentando o nervosismo dos políticos.

A turma concluiu que, com a economia indo bem e o povo menos mal, lucram Lula e o PT. Já se a economia ratear, eles dividirão os prejuízos nas contas de 2006. Os aliados também sacaram que, não bastasse isso, dificilmente o governo lhes fornecerá, no volume necessário, o ar de que precisam - as obras e os cargos que os tornam credores de suas clientelas.

Não é que os petistas da Esplanada não saibam disso. Ninguém precisa lembrá-los de que Lula teve 46,4% dos votos no primeiro turno de 2002 e o PT só 18,4% da votação para deputado federal. Mas alguma coisa acontece no seu coração que os impede de tirar disso as lições devidas.

Talvez seja um senso de superioridade moral em relação aos fisiológicos, talvez a relutância em compartilhar com eles a máquina que esperaram 25 anos para pilotar, talvez porque entre os companheiros tudo precisa ser antes discutido à exaustão.

Por um motivo ou outro, o fato é que o PT agravou as dificuldades estruturais que o sistema político brasileiro, assentado nas coligações eleitorais e nas coalizões de governo, impõe aos presidentes da República em busca de uma base parlamentar ampla e estável.

No período anterior, embora o partido do presidente fosse mais flexível que o do atual e embora Fernando Henrique tratasse os aliados com a cortesia que esperavam, freqüentemente ele se queixava da sua "maioria desorganizada" no Congresso.

Diante disso é de pasmar que o ministro da Comunicação do governo e confidente do presidente Lula tenha argumentado, para pedir a cabeça do titular da Coordenação Política, que o "mais normal" seria o principal partido do bloco majoritário cuidar do meio-de-campo entre o Executivo e os políticos.

Sem falar que esse mesmo partido escolheu o seu candidato à presidência da Câmara sem consulta aos líderes aliados, com os acabrunhantes resultados conhecidos. E que o presidente Lula passou quatro meses tentando fazer uma reforma ministerial destinada a ampliar a participação da base no governo.

A reforma, como se sabe, não saiu por causa do ultimato de Severino a Lula para a nomeação de um afilhado. Mas ela já tinha empacado na relutância do PT em ceder espaço aos peemedebistas que o presidente queria instalar no Gabinete para induzir o partido inteiro a apoiá-lo já no turno inicial de 2006, como na rodada final de 2002.

Só que o PMDB virou o proverbial gato escaldado. Eleito Lula, o ministro José Dirceu acertou com a direção peemedebista que a legenda teria pelo menos um lugar no Ministério. O presidente só cumpriu a promessa na reforma de janeiro de 2004.

Claro que os aliados são o que são. A corrupção nos Correios, exposta pela Veja, comprometendo o deputado Roberto Jefferson, o presidente do PTB a quem Lula daria "um cheque em branco", não deixou ninguém boquiaberto, salvo, quem sabe, pela desfaçatez do apadrinhado - com quem Jefferson disse ontem não ter relações -, enquanto embolsava R$ 3 mil.

Ele tranqüilizou o doador, que achava que ia ser problema entregar ali o dinheiro, com uma resposta que vale por um tratado: "Aqui é mais seguro que lá fora, aqui não tem problema." Isto posto, o PT também é o que é. Leiam-se as cândidas declarações do ex-governador Orestes Quércia à Folha de S.Paulo de domingo. "A gente percebe que o presidente tem dificuldade em acertar acordos", diz ele em dado momento. "Às vezes um senador tem posição política pequena numa cidade e o governo não cumpre aqueles acordos pequenininhos (com o senador)."

Quércia critica Lula por coisas pequenininhas e grandinhas - todas reveladoras. O presidente não o convidou para a posse, ao que um amigo de Quércia teria comentado: "Puxa, dei recurso para o Lula porque você pediu, e agora não vai?" E quando decidiu nomear dois ministros peemedebistas podia ter escolhido um do Sul. "Em política, isso é elementar", ensina Quércia.

Leia-se também, no Estado de segunda-feira, o relato de recente encontro entre Lula, Dirceu, o presidente do Senado, Renan Calheiros, do PMDB, e outros. A idéia era pedir a Lula que ficasse neutro nas disputas em que mais de um candidato a governador viesse a apoiá-lo.

Ele estava prestes a concordar quando Dirceu interveio: "Quem vai decidir isso é o comitê político (da reeleição), e não o candidato." Os peemedebistas saíram se queixando de que a conversa foi desastrosa "porque Lula dizia uma coisa e Dirceu, outra". No Roda-Viva, anteontem, o ministro disse que a vontade do presidente "prevalece sempre". Nem sempre.

Hoje Lula deve reunir-se com os Estados Gerais da Câmara (os membros da Mesa e o colegiado de líderes). Quando o encontro foi agendado, o escândalo dos Correios ainda não tinha irrompido. Não se sabe, portanto, quão pior ficou o clima.

Em todo caso, é bom lembrar que Fernando Henrique jurava que jamais "brigaria com o Congresso" - e não brigou. As coisas eram melhores porque o PSDB não escanteava os aliados e estes tinham mais pontes com os tucanos do que os de hoje com os petistas. Mas o passado passou: para Lula chegou o temido momento de discutir a relação.