Título: Relativismo: 'Bento XVI está certo'
Autor: Nathan Gardels
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/05/2005, Vida &, p. A22

Professor emérito de antropologia da Universidade de Stanford (EUA), René Girard, eminente conservador católico romano e autor do livro A Violência e o Sagrado, faz, nesta entrevista, uma defesa apaixonada das idéias do papa Bento XVI. Entre seus livros mais recentes estão Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo e Eu Vejo Satã Cair como o Raio. Quando Bento XVI denunciou recentemente o que viu como a "ditadura do relativismo", em especial na cultura européia, isso causou grande controvérsia. O papa tem razão quando diz que vivemos em tal ditadura?

Sim. Essa fórmula - a ditadura do relativismo - é excelente. Ela vai estabelecer um novo discurso, assim como a idéia de João Paulo II de resgatar uma "cultura da vida" e "cultura da morte" enquadrou todo um conjunto de questões, de aborto a pesquisa com células-tronco e guerra. Faz sentido que essa fórmula venha de um homem (o ex-cardeal Ratzinger) cuja especialidade é dogma e teoria. Esse reinado do relativismo, que é tão marcante hoje, se deve, em parte, às necessidades de nosso tempo. As sociedades são muito confusas, com uma pluralidade muito grande de pessoas. Você tem de manter o equilíbrio entre vários credos. Não deve tomar partido. Cada crença merece supostamente o mesmo valor. Até quando não se é um relativista, deve-se parecer um. Por conseqüência, temos mais e mais relativismo. E temos mais e mais pessoas que odeiam qualquer tipo de fé. Isso é especialmente nítido na universidade. E repercute na vida intelectual. Como todas as verdades são tratadas como iguais, pois lá se diz que não há verdade objetiva, somos forçados a ser banais e superficiais. Não se pode ser realmente comprometido com algo, mesmo que só por agora. Como Ratzinger, porém, eu acredito em compromisso. Afinal, estamos ambos convencidos da idéia de que a responsabilidade exige que devemos nos comprometer com uma posição e segui-la.

Apesar da controvérsia que o comentário de Bento XVI causou, ele estava afinado com a encíclica Veritatis Splendor, de João Paulo II. Ela criticava a sociedade pós-moderna por estar se tornando indiferente a valores, em nome da tolerância. Seu temor era um novo niilismo, que poderia mergulhar o mundo em episódios desumanizadores de ambições de poder parecidos com os desastres fascista e comunista.

O pós-modernismo é dramático ao dizer que não há valores absolutos, que não há uma verdade, que a linguagem não pode alcançar a verdade. Tal como o papa João Paulo II na encíclica que você menciona, o papa Bento XVI está se engajando nessa luta de frente ao atacar a voga de descrença no mundo contemporâneo, em especial na Europa. Como João Paulo II, ele sabe por experiência pessoal que sem religião as sociedades caminham para a ruína. E não hesita em dizê-lo. Espero que sua mensagem repercuta. Seu desafio ao relativismo é importante não só para a Igreja e para a Europa, mas para o mundo todo.

Até Jean Baudrillard certa vez concordou que o mundo todo, inclusive a China e o Japão, está implicado na fragmentação pós-moderna e no desarraigamento que deixa os valores para trás. Há uma exceção: o Islã. Ele continua sendo um desafio à indiferença radical que se espalha pelo mundo. Não é fato que o Islã seja a única civilização integralmente baseada na fé e por isso esteja em conflito com nossa cultura secular pós-moderna como Ratzinger? Afinal, apesar dos esforços de João Paulo II, os redatores da Constituição da União Européia rejeitaram qualquer menção à herança cristã do Ocidente. Cada Estado islâmico menciona o Islã como sua fundação cultural.

A civilização ocidental está, sem dúvida, predominantemente do lado do relativismo secular. Isso não é verdade no mundo islâmico, onde a fé predomina. É precisamente por essa vitória do relativismo que o papa Bento XVI fez da defesa da verdade cristã sua missão central. Dito isso, eu deveria dizer também que o secularismo americano - que surgiu em defesa da liberdade de religião - e o laicismo francês - que surgiu da oposição jacobina à Igreja - são mais parecidos do que a maioria das pessoas percebe porque são experimentados da mesma maneira no nível pessoal. Eu temia que depois do atentado de 11 de setembro de 2001, o projeto de integrar a juventude muçulmana na sociedade francesa se desfizesse. Muitos previram que a proibição dos véus muçulmanos para garotas nas escolas francesas causaria uma agitação interminável. Não causou. As garotas se adaptaram, portando sua fé religiosa de uma maneira a não conflitar com o Estado. Elas estão de fato na conexão da integração, encontrando maneiras de viver nos dois mundos. Na França e nas sociedades muçulmanas, as mulheres estão inclinadas para o Ocidente.

Não é só o papa que não gosta do relativismo na Europa, onde as igrejas podem estar vazias, mas as mesquitas estão cheias. São também os muçulmanos radicais, como o marroquino que cortou a garganta de Theo Van Gogh na Holanda, possivelmente a capital mundial do relativismo.

Esse conflito, você tem razão, é mais agudo na Europa, especialmente na Holanda, onde a idéia pós-moderna de igualdade das culturas está mais imbricada na política. Deus sabe que eles são muito liberais, razão por que essa violência não deveria ter acontecido. Na América, não há um verdadeiro reconhecimento do ponto a que as coisas chegaram. Na França, por exemplo, uma em cada três crianças é muçulmana. Ao mesmo tempo, de novo, quando se vêem essas garotas muçulmanas com seus véus debatendo na televisão francesa, seu nível cultural é alto. Elas são brilhantes e articuladas. Eu não desistiria da integração, mesmo que a dinâmica atual conduza para a direção oposta. É a nossa única esperança. O que faríamos se a Europa se tornasse muçulmana?

Assim como há um choque dentro do Islã entre tradição e modernidade, a cruzada do papa Bento XVI contra o relativismo não estaria também anunciando um choque no Ocidente? Mas a questão no Ocidente não é acomodar a fé com a razão. Não é resistir a uma cultura de materialismo e descrença insistindo em valores, como o papa o colocou, além de "egoísmo e desejo". Figuradamente, o conflito é entre o papa e Madonna (a cantora pop).

É uma guerra de culturas, sim. Eu concordo. Mas não foi Ratzinger que mudou e de repente se tornou reacionário e conservador. É a cultura secular que passou dos limites. Lembre, Ratzinger foi um defensor do Concílio Vaticano II, que reformou a Igreja nos anos 1960. Ele foi contra a idéia de que a Igreja deveria ficar parada num mundo em modernização. Para ele, ser católico romano é aceitar que a Igreja tem algo a aprender com o mundo. Ao mesmo tempo, há uma verdade que não muda: o Evangelho. Hoje, ele está apenas reafirmando sua posição, defendendo seu terreno. Ratzinger é um conservador inteligente. Ele deseja evitar o fundamentalismo de alguns muçulmanos e cristãos - contra qualquer mudança -, mas também evitar a idéia de que tudo o que é novo é melhor que o velho. Ele quer resistir a essa dissolução da Igreja em qualquer direção que o mundo tome. Nesse sentido, apóio Ratzinger.

Pouco depois do atentado de 11 de setembro, o primeiro-ministro italiano Silvio Berlusconi foi amplamente condenado ao dizer que o cristianismo é superior ao islamismo. Quando Ratzinger disse há alguns anos que o cristianismo era uma religião superior, ele também causou polêmica. Em 1990, na encíclica Redemptoris Missio, o papa João Paulo II disse a mesma coisa. Não deveria surpreender que os fiéis afirmassem sua fé como a verdadeira. Talvez seja uma marca da predominância relativista que o papa Bento XVI condena o fato de isso ser um tanto controvertido?

Por que você seria um cristão se não acreditasse em Cristo? Paradoxalmente, nos tornamos tão etnocêntricos em nosso relativismo que sentimos que só fica bem para os outros considerar sua religião superior! Nós somos os únicos sem nenhum centrismo.

O cristianismo é superior às outras religiões?

Sim. Toda a minha obra tem sido um esforço para mostrar que o cristianismo é superior e não apenas mais uma mitologia. Na mitologia, uma multidão enfurecida se mobiliza contra bodes expiatórios responsabilizados por alguma crise enorme. O sacrifício da vítima culpada pela violência coletiva encerra a crise e funda uma nova ordem ordenada pelo divino. A violência e o uso de bodes expiatórios estão sempre presentes na definição mitológica do próprio divino. É verdade que a estrutura dos Evangelhos é semelhante à da mitologia, em que uma crise é resolvida por uma única vítima que une todos contra ela, reconciliando assim a comunidade. Como pensavam os gregos, o choque da morte da vítima provoca uma catarse que reconcilia. Ele extingue o apetite pela violência. Para os gregos, a morte trágica do herói permite a volta das pessoas comuns à sua vida pacata. Entretanto, nesse caso, a vítima é inocente e os "vitimizadores" são culpados. A violência coletiva contra o bode expiatório como ato fundador, sagrado, revela-se uma mentira. Cristo redime os "vitimizadores" ao suportar seu sofrimento, implorando a Deus para "perdoá-los porque eles não sabem o que fazem." Ele se recusa a pedir a Deus para vingar sua vitimação com uma violência recíproca. Prefere mostrar a outra face. A vitória da cruz é a vitória do amor contra o ciclo de violência do bode expiatório. Ela invalida a idéia de que o ódio é um dever sagrado. Os Evangelhos fazem tudo o que a Bíblia, no Velho Testamento, fez antes, reabilitando um profeta vítima, uma vítima erroneamente acusada. Mas eles também universalizam essa reabilitação. Eles mostram que, desde a fundação do mundo, as vítimas de todos os assassinos ao modo da Paixão foram vítimas do mesmo contágio de multidão, como Jesus. Os Evangelhos tornaram essa revelação completa porque dão à denúncia bíblica da idolatria uma demonstração concreta de como os falsos deuses e seus sistemas culturais violentos são gerados. Essa é a verdade que falta à mitologia, a verdade que subverte o sistema violento deste mundo. Essa revelação de violência coletiva como uma mentira é o marco do judaico-cristianismo. É isso que é único no judaico-cristianismo. E esse caráter único é verdadeiro.

Leszek Kolakowski, o filósofo humanista marxista que escreveu A Vingança do Sagrado na Cultura Secular, fez uma distinção entre "tolerância pluralista" - o respeito às crenças alheias - e "tolerância indiferente", que se recusa a acreditar numa verdade superior. A pessoa pode se opor, como você e Ratzinger, à indiferença de valores, mas será que isso deve implicar intolerância teocrática?

Isso seria uma tolice. Os cristãos não podem transformar outros em bodes expiatórios em nome da vítima inocente! Não é preciso aprovar Carlos Magno convertendo os saxões pela força ou as Cruzadas para ser um bom cristão. Ratzinger não apóia isso.

Diferentemente do predecessor, que era visto como ecumênico, Bento XVI é visto como um sectário que não estenderá a mão a outras religiões. Essas posições fortes contra o relativismo não limitariam uma atitude ecumênica?

Não achei o famoso encontro de Assis "escandaloso" - quando João Paulo II convidou outros líderes religiosos para o diálogo e beijou o Alcorão -, como alguns conservadores acharam. Não vejo conflito entre Bento XVI afirmar vigorosamente suas crenças na presença de outros que acreditam com igual vigor nas próprias fés. Ninguém imaginaria que ecumenismo significa desistir da crença na superioridade da própria fé.

Bento XVI criticou a globalização como fator de expansão do relativismo secular, que ele considera a grande ameaça em todo o mundo. Você vê esse vínculo?

Sim, vejo. É muito difícil para o cristianismo se defender, resistir à demagogia que diz que se deve ir ao extremo e abrir mão da superioridade . Afinal, é o que qualquer outro culto de nossa civilização global diz de si mesmo. Nesta era de informação global, o cristianismo não tem as proteções contra o conhecimento que as religiões arcaicas tinham. Ele defende a verdade. Ele é racional. Ele se abre para a ciência, como João Paulo II mostrou, por exemplo, quando disse que não havia nenhum problema na evolução quando a concebemos num contexto cristão.

Uma de suas mais famosas teorias é a da "rivalidade mimética" - não são as diferenças que provocam o conflito, mas o desejo de possuir o que o outro possui. A globalização não seria uma "rivalidade mimética" numa escala planetária - pura rivalidade competitiva não mediada pelo respeito à dignidade da pessoa conferida pelo cristianismo? Ratzinger estaria certo em se preocupar com a globalização desse ponto de vista?

Sim. Vivemos num mundo mimético. Um século atrás, aquelas grandes exposições mundiais em Paris e Londres anteciparam a globalização ao visualizar um mundo em que ninguém era amigo de ninguém. Hoje, somos mais realistas. Temos consciência de que globalização não significa amizade global, mas competição global e, portanto, conflito. Isso não significa que nos destruiremos mutuamente, mas tampouco que o mundo será alguma aldeia global. Pode-se dizer que a globalização começou no século 15, quando os portugueses circunavegaram a África para chegar à Ásia, mas agora o processo foi completado em todo o mundo. É uma conseqüência da civilização ocidental e, como tal, foi o cristianismo que unificou o mundo. Mas se o mundo não se unificar numa maior responsabilidade pela obtenção da paz, ele se colocará em perigo.

Como você sugere em sua teoria, a diluição da diferença não põe fim ao conflito. Tornar-se o mesmo intensifica a rivalidade, vide os recentes problemas na Ásia, agora que a China está se modernizando como o Japão.

Exatamente. É um pouco assustador e é uma rivalidade em que o Ocidente não está envolvido. Ela resultou da auto-afirmação da China. O que aconteceu com o Japão é um mistério. O Ocidente os criticava por serem competitivos demais. Agora, eles já não parecem dispostos a competir. Haverá alguma sabedoria nisso?

O que pensa da ascensão da direita religiosa nos Estados Unidos?

O que vemos nos EUA é mais a ascensão do Partido Republicano do que da direita religiosa. Não creio que haja mais fundamentalistas cristãos nos EUA hoje do que há 30 anos; a questão é que eles ficaram mais politizados. Os republicanos focaram em questões que os estão levando às urnas. E essa é uma grande mudança. O problema com os fundamentalistas cristãos, embora menor que o dos fundamentalistas muçulmanos, é sua visão da violência de Deus. Eles falam freqüentemente hoje do apocalipse. É certo se preocupar com os rumos do mundo. Mas a violência não virá, como sugerem, de Deus. Acho isso incrível. Nós, humanos, é que somos responsáveis por ela. Essa, de muitas maneiras, é uma das principais mensagens dos Evangelhos. O significado todo da encarnação é dizer que o humano e o divino estão inter-relacionados de um modo exclusivo da teologia cristã, impensável em qualquer outra religião e, a meu ver, absolutamente superior. Seja no caso de muçulmanos focados no martírio ou dos cristãos fundamentalistas focados no apocalipse, a velha concepção grega de um Deus apartado do homem não é suficiente. Esse é o real significado de toda a minha obra.