Título: A marcha sobre Brasília
Autor: Milton Campos
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

A respeito do MST já existe farta literatura. Uns nele vêem crescente trajetória para conquista do poder, mudado o objetivo real ¿ revolução ¿ temporariamente pelo da reforma agrária para não amedrontar a burguesia.

Receiam um movimento cujos líderes têm e difundem a ideologia marxista-leninista, não só Stédile, que tem suporte firme de religiosos expressivos entre seus congêneres, mas os que já estão formados na capacitação política segundo o catecismo marxista e a inspiração nos retratos de Guevara e Mao Tsé-tung nas escolas que fundam.

Esses são alarmistas não levados a sério.

São reacionários, conforme o jargão dos anos 1950.

Os sem-terra esconderiam seu verdadeiro propósito para não constranger o presidente Lula, que, em visita recente a um assentamento, declarou, enfaticamente, que o MST é um movimento social que merece respeito e apoio.

Outros concordam com o presidente e prestam todas as homenagens ao MST e até o financiam, aqui e no exterior, inclusive entidades religiosas.

Pensam que o fundamento da luta pela reforma agrária é a injusta distribuição da propriedade privada rural, resultado da formação política do Brasil, com a divisão de seu território no período colonial nas famosas capitanias hereditárias.

Governos, distanciados embora no que tange à filiação doutrinária, sejam os militares, sejam os civis, em todas as gestões contemporâneas têm dado terras aos despossuídos.

Todos costumavam jactar-se sempre de lhes terem dado mais terras do que o antecessor e até do que a soma de todos os presidentes anteriores.

Isso não resolveria as ambições do MST.

Quer muito mais que distribuição de terra à maneira de generosidade que se transforma em voto.

Quer conquistá-la por meio de invasões de empresas rurais existentes e desde logo dispondo de serviços públicos, infra-estrutura pronta para ser explorada e nunca em áreas devolutas.

A Igreja, por muitos de seus hierarcas, abranda o termo invasão, trocando-o por ocupação, como se abandonadas fossem.

No governo João Figueiredo o usucapião foi diminuído de dez anos para um ano e um dia, proporcionando aos verdadeiros posseiros a titulação da terra cujo proprietário dela se tivesse afastado.

Mas isso é um processo pacífico, sustentado na lei.

Muito diversa é a prática dos sem-terra, muito bem organizados e respeitados pelos governos de esquerda que temos tido, embora ser de esquerda seja algo muito controvertido no julgamento dos que se arrogam representá-la.

Fernando Henrique se disse sempre de esquerda, mas os que não lhe reconheciam essa qualificação o apelidavam de neoliberal, uma blasfêmia ideológica.

Os parlamentares chamados radicais, que o PT expulsou por se rebelarem contra o centralismo democrático, tacharam igualmente de neoliberal o atual governo petista.

Logo, que é o MST? Um pacífico movimento social compatível com a ordenação jurídica de uma democracia ou um sólido movimento de massa, com lideranças muito bem definidas, que são obedecidas à maneira militar, não simples liderados, mas peões de um tabuleiro de xadrez que o enxadrista maneja à busca do xeque-mate, o que, para os alarmistas, é o poder.

Segundo outros, porém, apenas a consecução da justiça social, expressão que Hayek, neoliberal, acha descabida.

Há, todavia, que se deter o analista isento na conduta habitual do MST: a tática permanente das invasões; a capacitação política revolucionária em escolas que se dispensam de pedir autorização ao Ministério da Educação; o ataque violento à burguesia, que Marx definiu no Manifesto Comunista de 1848 como sendo ¿a fonte de todos os vícios e maldades¿.

Crescendo em volume das reivindicações, os sem-terra fazem agora a maior demonstração de seu poder de arregimentação, na marcha sobre Brasília.

Duzentos quilômetros em estilo militar, em efetivo maior que o de uma divisão de infantaria, de 10 mil homens, sem dúvida mais bem servida de recursos, como motorização com 280 ônibus, 120 banheiros sépticos, 250 mil litros de água refrigerada por dia, 6 ambulâncias equipadas para primeiro socorro, emissora privada de rádio FM, a transmitir para os marchantes, providos de fones nos ouvidos, e, como se fosse pouco, duplas de cantores se revezando no trio elétrico, enquanto locutores ¿clamam contra o FMI e a Alca e o agronegócio, inimigos do povo¿.

Naturalmente, o destacamento precursor indicou as fazendas que, de Goiânia a Brasília, deviam ser invadidas para o descanso ou o pernoite, a cada percurso de 17 quilômetros, onde filmes são passados (e, naturalmente, não são filmes ¿burgueses¿), um telão para que os 15 mil sem-terra possam ver os telejornais e os filmes ao ar livre, e professores que mesmo em intervalos da marcha continuam lecionando.

Tudo em caráter de privacidade rigorosa, a que jornalistas só têm acesso se acompanhados.

Os fascistas não foram tão organizados na Marcha sobre Roma, que levou Mussolini ao poder.

Terá Marx errado quando disse que o lumpemproletariado (o segmento mais pobre da sociedade burguesa) ¿pode ser arrastado à Revolução, mas é mais tendente a vender-se à reação¿?