Título: Deu um cheque e dormiu tranqüilo
Autor: Dora Kramer
Fonte: O Estado de São Paulo, 17/05/2005, Nacional, p. A6

Relegar o esquema de corrupção montado na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos ¿ segundo seu executor, por inspiração e para benefício do PTB ¿ a um problema da alçada exclusiva do partido, nesta altura é a última prerrogativa que se poderia conceder ao presidente da República. Mais não fosse porque Luiz Inácio da Silva em outubro último deu aval a toda e qualquer ação do presidente do PTB, Roberto Jefferson.

Este, à saída de um encontro com o presidente para tratar justamente de acusações ¿ à época, de um acordo pelo qual o PT teria ¿comprado¿ o apoio eleitoral do PTB em cinco cidades por R$ 10 milhões ¿, relatou ter ouvido do presidente o seguinte: ¿Você atravessou o oceano sozinho.

Eu te daria um cheque em branco e dormiria tranqüilo.

¿ Não se fez jamais no governo nenhum reparo à manifestação de confiança e tampouco se deu confiança às denúncias logo atribuídas ao ânimo caluniador de um ou outro deputado petebista eleitoralmente insatisfeito.

Perdeu-se, ali, uma excelente oportunidade de esclarecer suspeições, em vez de desqualificá-las passando a mão na cabeça dos suspeitos.

No caso, o PT também estava envolvido e, pelo jeito, é por aí que o governo se enrola.

Perde suas prerrogativas morais de cobrar moralidade em casos assim como esse, de evidência acachapante, quando por repetidas vezes evita enfrentar com austeridade, rigor e coragem denúncias contra integrantes do governo em escalões mais altos que os agora demitidos Maurício Marinho, chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios e seu superior imediato, o diretor de Administração, Antônio Osório Batista.

É verdade que tão eloqüente como este agora, nunca havia vindo a público um caso.

Mesmo o de Waldomiro Diniz ainda prestava-se ao exercício da desfaçatez porque, na fita onde aparece pedindo propina, fica claro que é cor5>rupto, mas a comprovação da existência de um esquema de corrupção em funcionamento careceria de investigações.

Na reportagem de domin5>go, a revista Veja mostra um sólido sistema em ação.

Seguramente por sentir as costas quentes, o chefe de seção filmado por lobistas dizendo-se interessados em fazer negócios com o governo deu nome, sobrenome, endereço e atividades do empreendimento por ele executado nas dependências de uma das empresas estatais que, até muito recentemente, aparecia nas pesquisas como uma das mais acreditadas junto à população.

¿Nós somos três e trabalhamos fechados.

Os três são designados pelo PTB, pelo Roberto Jefferson.

É uma composição com o governo.

Nomeamos o diretor, um assessor e um departamento-chave¿, diz Maurício Marinho na gravação, autodesignando-se a função de ¿departamento-chave¿.

A reação dos petebistas e governistas ante tantas e tão inquestionáveis evidências foi de susto, expresso na disparidade de versões oferecidas a título de explicação.

Uns falaram de ¿fato isolado¿, outros em fantasias produzidas pela mente doentia de um funcionário com mania de grandeza ¿ segundo o líder do PT no Senado, Delcídio Amaral, ele tentava ¿vender o Pão de Açúcar¿ aos lobistas ¿, havendo mesmo quem atribuísse a fala de Marinho na fita ao diabetes e à hepatite que acometem o funcionário.

Criativo, é de reconhecer, mas estapafúrdio.

Ventilou-se ontem também a hipótese de o indefeso e cândido líder Roberto Jefferson estar sendo vítima de uma chantagem posta em prática pelo funcionário que, tendo montado a filmagem para incriminá-lo, ofereceu a ele antes a fita.

Em troca do quê, não se diz, bem como não fica claro qual o interesse do chefe de seção de divulgar cenas onde é o personagem principal e , óbvio, candidato primeiro à punição.

O que torna definitivamente crível o conteúdo da gravação é que Veja apresenta, com fatos, a comprovação do teor da conversa de Maurício Marinho com os lobistas.

Ele se refere a nomeações e licitações que realmente vieram a existir.

Muito bem, e agora o que quer o PTB do governo? Isonomia de tratamento.

Para o petebista de São Paulo Campos Machado, o governo Lula tem o ¿dever¿ de defender Roberto Jefferson porque defendeu o ministro da Casa Civil, José Dirceu, ¿numa situação muito mais grave¿.

A saber, o caso Waldomiro Diniz.

Defendeu não só ele, mas muitos outros ¿ todos, traduz melhor a situação ¿ que vieram a ser alvo de suspeitas.

Proteção dada pelo presidente a pretexto de preservar sua autoridade e não ser pautado por ¿manchete de jornal¿.

É um perfeito e bem acabado direito do presidente da República escolher seu método de trabalho.

E o escolhido por Lula leva em conta o critério do contrário: sempre que a maré aponta para um lado, ele ruma para o lado oposto.

Se o clamor é por demissão deste ou daquele, o presidente Luiz Inácio da Silva firma-se na manutenção deste ou daquele.

Se o consenso indica pela prudência do afastamento, ainda que temporário, de altos funcionários investigados, Lula faz da solidariedade profissão de fé.

O problema da lógica da blindagem como reação automática, é que ela não apenas faz do presidente um refém da própria teimosia, como também o torna prisioneiro da presunção de todas as inocências.

Por menos, como diz o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio Mello, ¿escancaradas¿ que tais inocências sejam.