Título: 40 milhões de paulistas
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Ostento, na parede de meu escritório, uma preciosidade. Um quadro, com o poema Nossa Bandeira, a mim dedicado pelo autor, Guilherme de Almeida. Éramos contraparentes. Como um padrinho, ele se dava ao trabalho de ler as minhas poesias de adolescente e me augurava um futuro de escritor. Era um apaixonado por São Paulo e sua gente. Ele se emocionava ao falar de nossa terra. Eu ainda era menino. Somente anos mais tarde vim a compreender, à plenitude, o sentimento brioso daquele que foi o maior de nossos poetas. Nascer em São Paulo é uma circunstância. Já ser paulista é um estado de espírito. São Paulo não nasceu em berço de ouro. Ao contrário, era a mais pobre das províncias do Brasil colônia. Mas o sentimento nativista, por aqui, brotou cedo. No salão nobre do Palácio dos Bandeirantes há um quadro que retrata a aclamação de Amador Bueno. Os paulistas queriam-no como seu rei. E isso se deu em 1640! Bueno recusou a coroa e, com isso, a nossa independência, como a do restante do Brasil, tardou mais quase dois séculos.

Portugal, a nossa metrópole, nunca se interessou por São Paulo. Fixou sua atenção, primeiro, no Nordeste, onde produzia cana-de-açúcar, e, depois, nas Minas Gerais, de onde extraía ouro e diamantes. O Rio de Janeiro também era importante, pois lá se instalou a capital da colônia. Órfãos da Coroa, aos paulistas só restou o caminho da aventura e do desbravamento. Por força das circunstâncias, a iniciativa privada, no Brasil, nasceu aqui. Sem nenhuma ajuda ou incentivo do Estado, foram as bandeiras os nossos primeiros empreendimentos. Homens rudes se associavam em grupos, levantavam a duras penas mantimentos e armas e partiam, audaciosamente, para o sertão desconhecido. Seu intento era apresar índios ou, quem sabe, encontrar pedras preciosas.

É fácil recriminar os bandeirantes. Alguns historiadores o fazem, relembrando que o objetivo das empreitadas era capturar escravos e, portanto, não era dos mais nobres. Mas há que entender que os paulistas, abandonados à própria sorte pelo Reino, não tinham alternativa. As bandeiras foram, isso sim, verdadeiros prodígios de empreendimento privado. Os seus membros, enfrentando todas as adversidades, desbravaram milhares de quilômetros continente a dentro e foi graças à sua obra que o Brasil triplicou o território que lhe havia sido concedido pelo Tratado de Tordesilhas. Se o Brasil é grande, é porque eles também o foram.

Como chegamos até aqui? Certamente não foi por favor de ninguém. Nunca fomos a capital do Brasil. Nenhum rei se fixou por aqui. Ao contrário. Há apenas dois séculos, a capital da província paulista era uma humilde vila de 8 mil habitantes, sem ouro nem pedras preciosas e, ainda por cima, afastada do litoral.

O que, então, transformou São Paulo na maior potência do Brasil? Em primeiro lugar, o espírito empreendedor, que, como vimos, está no DNA dos paulistas. Em segundo lugar, a resposta é gente. Gente da melhor qualidade. Gente que para cá imigrou, colonos estrangeiros que aqui entenderam de "fazer a América". O café, até então uma cultura nômade, nos chegou pela exaustão das terras fluminenses. E aqui se fixou graças a essa abençoada gente, que sabia como preservar o solo e não se envergonhava de trabalhar pesado, ocupando o lugar que cabia aos escravos.

A cidade de São Paulo só viria a prosperar, de fato, a partir de 1870, após a construção da São Paulo Railway, a estrada de ferro que ligava as regiões produtoras de café ao Porto de Santos. Não houve favor nenhum. O governo do Brasil não investiu um único centavo nessa ferrovia. Em poucos anos, construída a ferrovia-tronco, foi o capital privado dos paulistas, unido à sua vocação empreendedora, que se encarregou de instalar trilhos por todos os cantos da então província. As Estradas de Ferro Sorocabana, Paulista, Mogiana e várias outras foram construídas exclusivamente com recursos privados dos empresários paulistas.

E como São Paulo se industrializou? Novamente não houve ajuda do Estado. No início do século passado, os capitães da indústria paulista eram quase todos imigrantes. Italianos, portugueses, libaneses, gente que antes se dedicava ao comércio de café e que houve por bem empreender indústrias. Toda a infra-estrutura de São Paulo - ferrovias, portos, armazéns, estradas - foi construída com capitais privados. Dinheiro dessa gente. Dinheiro da nossa gente.

Décadas após, quando JK deu o arranque decisivo para a industrialização do Brasil, o parque fabril - em razão da estrutura já existente - acabaria, naturalmente, por se concentrar em São Paulo.

São Paulo, é bom que se diga, jamais explorou ninguém. Ao contrário. Acolheu de bom grado todos os brasileiros de outros Estados que para cá vieram em busca de um sonho. Eles logo incorporaram o espírito paulista. Eles também fazem parte do que chamamos de nossa gente.

Essa gente, que agora chega ao número de 40 milhões, é, sem dúvida, o maior patrimônio de São Paulo. Nós nos orgulhamos dela. Eu ainda me emociono ao ler os versos de Guilherme de Almeida:

"Bandeira de minha terra,

bandeira das treze listas:

são treze lanças de guerra,

cercando o chão dos paulistas!"

Meu padrinho, você tinha razão.

João Mellão Neto, jornalista,

foi deputado federal, secretário e ministro de Estado.

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