Título: O petróleo é deles
Autor: CELSO MING
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2005, Economia, p. B2

A História foi sempre grande produtora de ironias. A mais recente envolve a maior jóia do nacionalismo brasileiro, a Petrobrás. Juntamente com 11 outras multinacionais do setor, a Petrobrás está sendo atacada pelos nacionalistas bolivianos que a acusam de aproveitar-se a preço vil dos recursos do país.

Isso acontece justamente quando a Petrobrás é administrada por um governo declaradamente de esquerda, que se considera herdeiro do acervo nacionalista do Brasil.

Quarta-feira, contra a vontade do presidente Carlos Mesa, o Congresso boliviano promulgou a nova lei de hidrocarbonetos que aumenta de 32% para 50% os impostos sobre o gás bombeado para o território brasileiro. Além disso, instaura a estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia (YPFB) como agência reguladora do setor, encarregada agora de renegociar 72 contratos de exploração. São decisões que atropelam regras do jogo no meio do jogo.

A Petrobrás não cuida só do transporte do gás boliviano aos centros de consumo do Brasil. Detém o controle das duas refinarias de petróleo bolivianas, é responsável por toda a gasolina e por 60% do óleo diesel vendidos no país, cria 20% da riqueza da Bolívia, contribui com 22% da arrecadação tributária e gera direta ou indiretamente 11 mil empregos.

Nacionalistas bolivianos julgam-se lesados pelas condições, que consideram predatórias, dos recursos energéticos nacionais. Dia 13, um atentado a bomba destruiu um caminhão-tanque com combustível da Petrobrás. Desde o dia 16, estradas da Região Oeste estão fechadas por sindicatos e movimentos populares integrados por aborígines e mineiros.

Isso pode ser só o começo. O Movimento ao Socialismo, que achou a nova lei fraca demais, está ganhando força política e a situação do presidente Mesa é delicada. Os habitantes do Altiplano querem acesso à renda da mais desenvolvida Região Oeste do país.

Os contestadores começaram por reivindicar substancial aumento dos royalties pagos pelas corporações na exploração de hidrocarbonetos. Agora, querem a estatização imediata da produção de petróleo e gás. A Petrobrás também é acusada de colocar em risco o equilíbrio ambiental no Parque Nacional Yasuní, uma das maiores reservas mundiais de biodiversidade.

Curiosamente, a ministra brasileira de Minas e Energia, Dilma Rousseff, e o diretor-financeiro da Petrobrás, José Sérgio Gabrielli, nada mais conseguiram fazer do que repetir o que todo dirigente de empresa estrangeira tem dito quando seus contratos são questionados pelo governo brasileiro: "Temos de adiar nossos projetos de investimento." Não deixa de ser um argumento forte, pois a Bolívia é pesadamente dependente de investimentos estrangeiros.

O aumento dos impostos sobre o gás prejudica ainda mais a Argentina, que sofre uma crise energética, precisa do gás boliviano, cujo consumo é de 4 milhões de metros cúbicos por dia, e precisa importar ao menos mais 16 milhões de metros cúbicos diários. A alta de preços do gás terá impacto sobre a inflação que já é de 11% ao ano e ameaça sair do controle.

Os bolivianos sabem que, se Argentina e Brasil não comprarem seu gás, ninguém mais o comprará. Mas aos manifestantes não ocorrem razões como essa.

Curiosamente, ataques à imperialista (ou, talvez, subimperialista) Petrobrás não se restringem à Bolívia. O presidente argentino, Nestor Kirchner, que terá de enfrentar o novo imposto boliviano e já comandou um boicote aos produtos Shell, também reserva palavras duras à Petrobrás, de quem se queixa de pouco-caso e de não investir na Argentina o que se comprometeu a investir.

E, de quebra, esses movimentos ameaçam o projeto estratégico do presidente Lula de criar uma Comunidade Sul-Americana de Nações capaz de fazer contraponto na região aos interesses dos Estados Unidos. A Bolívia é membro associado do Mercosul.