Título: Excesso de eficiência
Autor: Rogério L. F. Werneck
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/05/2005, Economia, p. B2

Em entrevista ao Valor, em 16/5, Antonio Barros de Castro, diretor do BNDES, afirmou que "o dólar do Mato Grosso mata o Rio Grande do Sul". Quis, com a frase, salientar o contraste entre a competitividade da agropecuária do Centro-Oeste e as dificuldades enfrentadas pelo segmento exportador da indústria de calçados gaúcha. A observação é especialmente oportuna. Chama a atenção para aspectos do problema cambial que precisam ser analisados com mais clareza. A frase traz à mente debate interessante, ainda que um tanto empoeirado, sobre câmbio e desenvolvimento regional no Brasil, deflagrado no início dos anos 1970 por Nathaniel Leff, então professor de Colúmbia. Argüia Leff que o atraso da Região Nordeste em relação ao Centro-Sul se devia, em larga medida, à baixa rentabilidade das exportações nordestinas de açúcar e de algodão, observada durante boa parte do século 19 e do começo do século 20, em decorrência do câmbio um tanto valorizado que a competitividade da economia cafeeira paulista permitia. Especialmente polêmica era a especulação contrafactual de Leff, que indagava se o desenvolvimento do Nordeste não teria sido mais rápido, tivesse a região se constituído como país independente, com taxa de câmbio condicionada pela competitividade de suas próprias exportações, e não do café. Na história de Leff, era São Paulo que aparecia como o "vilão", que, por excesso de eficiência, havia valorizado o câmbio e inibido o desempenho exportador de outras regiões.

Não parece ser o caso de usar argumento similar para inferir antagonismo de interesses entre Rio Grande do Sul e Mato Grosso. Até porque a economia gaúcha tem mostrado grande dinamismo na exportação de commodities, e não só na de produtos manufaturados. O que, sim, o argumento ajuda a perceber é um ponto central da complexa relação entre a competitividade dos diversos setores e a formação da taxa de câmbio. A rentabilidade das exportações de alguns segmentos industriais menos competitivos está de fato sendo comprimida, no mercado cambial, pela alta competitividade da produção de commodities, não de regiões específicas, mas do País como um todo.

Nesse quadro, não é surpreendente que manifestações de exportadores prejudicados pela evolução recente da taxa de câmbio denotem certa irritação com a folga cambial com que ainda contam alguns setores. No fundo, cada exportador parece acalentar a visão de que cabe ao governo assegurar que o mercado cambial seja sempre capaz de gerar a taxa necessária para manter atraente sua atividade exportadora. Vale a pena lembrar que a idéia de que cada setor deve ter "o câmbio que merece" já foi explorada de forma extremada no País, há meio século, com o regime de taxas múltiplas de câmbio. O governo administrava taxas de câmbio distintas para diferentes produtos exportados, punindo os mais competitivos e tratando melhor os considerados "gravosos". Afora poucas almas intervencionistas mais renitentes, ainda fascinadas com as ilimitadas possibilidades do ativismo governamental, não há mais quem em sã consciência defenda a volta a um regime cambial desse tipo. Mas o espírito que o inspirava parece estar ressurgindo em manifestações recentes de descontentamento com a taxa de câmbio.

Reforçando efeitos da política monetária sobre o mercado cambial, o gigantesco superávit da balança comercial - da ordem de 5% do PIB no primeiro trimestre - deverá continuar a ser o fator primordial de apreciação do câmbio em 2005. Há, claro, amplo espaço para dúvidas sobre a sustentabilidade de contas externas tão sólidas no atual quadro de incerteza acerca da economia mundial. E, se as contas se deteriorarem, o câmbio voltará a se depreciar. Quanto a isso, não há dúvida. O que talvez valha a pena indagar é o que deverá ocorrer com o câmbio se as condições para o bom desempenho das exportações continuarem favoráveis. Terão os exportadores de se conformar, em tal cenário, com taxa de câmbio tão ou mais valorizada que a de hoje? Não necessariamente. É bom lembrar que a economia brasileira ainda é excessivamente fechada. Há espaço de sobra para liberalização de importações, num quadro de negociações comerciais mais ambiciosas. É da demanda adicional de importações que, nesse cenário externo mais favorável, poderá advir depreciação significativa da taxa de câmbio. Há aqui um ponto trivial que os interesses exportadores no País ainda se recusam a entender. Remoção de restrições a importações aumenta a rentabilidade das exportações.

*Rogério L. Furquim Werneck, economista, doutor pela Universidade Harvard, é professor-titular do Departamento de Economia da PUC-Rio