Título: Um aumento que diminui o Congresso
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2005, Espaço Aberto, p. A2

Três semanas atrás critiquei aqui o aumento de 15%, com efeito retroativo a janeiro, dado pelo Congresso a seus servidores e aos do Tribunal de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do Poder Legislativo (Congresso volta a assaltar cidadão indefeso, 28/4). Numa ação que merece elogios, o presidente Lula vetou esse aumento, alegando que a respectiva verba não estava prevista no orçamento. Houve quem, no Congresso, retrucasse que ele tem dinheiro em caixa para o gasto adicional, confundindo orçamento com disponibilidade financeira e revelando ignorância em matéria fiscal, além da irresponsabilidade com que a decisão foi tomada.

Desde a eleição de Severino Cavalcanti como presidente da Câmara, o Executivo vem acumulando derrotas no Congresso. Ainda ontem os jornais noticiaram outra, do candidato petista e do Planalto a uma vaga de ministro do TCU, o deputado José Pimentel (PT-CE). Foi eleito José Nardes (PP-RS), cujo currículo ostenta um processo no Supremo Tribunal Federal por irregularidades em campanha eleitoral, processo esse suspenso mediante pagamento de multa e compromisso de realizar palestras sobre democracia em escolas de Brasília. Na disputa, perdeu mesmo o cidadão, com a indicação de mais um político para um órgão que deveria ser blindado contra essa gente e sua influência.

Há, assim, o risco de o veto ser derrubado no Congresso. Segundo editorial deste jornal na segunda-feira (Corporativismo caro, A3), Lula afirmou que se isso acontecer recorrerá ao Supremo, argüindo a inconstitucionalidade do projeto, pela razão já apontada.

Como o Congresso está num momento em que a razão lhe vem faltando em votações descabidas como a desse aumento, vale insistir nos argumentos contrários a ele, na esperança de que a instituição retorne do desvio por onde se meteu ao aprovar tamanho disparate.

E um disparate enorme porque, além do seu lamentável impacto nas contas públicas, ampliado pelo que incendiaria de reivindicações dos demais servidores, o aumento agravaria distorções que se acumulam há décadas mediante decisões e votações na mesma linha. Nelas foram desprezados princípios que deveriam balizar os parlamentares, em particular a busca do ideal republicano do bem comum, e não o benefício em causa própria e as iniqüidades e os privilégios que o aumento fortemente agravaria.

É sabido que os servidores do Congresso estão entre os mais bem remunerados de Brasília e do País, com um salário médio próximo de R$ 10 mil por mês, um pouco acima do Judiciário. O contraste é bem maior relativamente aos salários dos funcionários civis e militares do Poder Executivo, cuja média, em torno de R$ 3 mil, é cerca de um terço do que ganham os que seriam beneficiados com o aumento. Como o Executivo não tem a menor condição de dar o mesmo porcentual a seus servidores, a média salarial destes cairia para próximo de um quarto da do Legislativo.

O presidente da Câmara tem reafirmado sua promessa de um plano de carreira para os servidores do Legislativo. Se pautasse suas ações pelos referidos princípios, deveria avaliar a estrutura de cargos e salários do Congresso segundo padrões seguidos por especialistas em recursos humanos e adotados por organizações privadas em geral e pelo setor público de países desenvolvidos. Assim, caberia analisar os cargos do Legislativo segundo suas responsabilidades e requisitos como educação e experiência, identificar cargos com características semelhantes no mercado de trabalho como um todo e verificar se, cargo a cargo, os salários dos servidores do Congresso estão acima ou abaixo dos verificados fora dele, só então aferindo a necessidade de um ajuste. Aposto que se fizer isso vai verificar que nenhum aumento para os servidores do Legislativo será necessário agora e por vários anos. Se recebem tanto é porque o poder de legislar ganhos venceu a ética, a começar pelos próprios parlamentares legislando em causa própria e daí alcançando seus protegidos, concursados ou não.

A análise poderia prosseguir e questionar a necessidade dos demasiados funcionários que o Congresso ostenta. É um número perto de 20 mil (!) funcionários, dos quais cerca de 14 mil (!) não concursados, a maioria a serviço pessoal dos parlamentares.

A imagem do Congresso perante a população já é péssima, a ponto de gerar o temor de que a descrença na democracia acabe por reabrir os caminhos do autoritarismo. Num debate realizado recentemente no Rio de Janeiro, o deputado federal Fernando Gabeira (sem partido-RJ), que integra uma recém-criada frente para resgatar a imagem do Legislativo, disse que vê a instituição parlamentar em perigo, "em meio a uma situação extremamente grave, com a ameaça de volta ao autoritarismo. (...) Como conseqüência, já existem movimentos organizados pelo voto nulo, ou para que se vote só em candidato que nunca teve mandato, ou ainda para que os debates no Congresso sejam substituídos por referendos e plebiscitos" (Jornal do Brasil, 15/5).

Esse assunto do aumento de salários diminuiu ainda mais a avaliação do Congresso pela opinião pública e pela população em geral. Se derrubado o veto presidencial, o atrito entre Poderes sofrerá novo agravamento, num assunto particularmente grave, com desdobramentos inclusive na área militar, que mesmo com seus binóculos não vê à distância nem salários nem reajustes semelhantes.

Já que se dizem representantes do povo, os parlamentares deveriam refletir, sobretudo, sobre qual seria o voto dele se chamado a dirimir o impasse.

Roberto Macedo, economista (USP), com doutorado pela Universidade Harvard (EUA), é pesquisador da Fipe-USP e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail: roberto@macedo.com