Título: A matriz da corrupção
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 19/05/2005, Notas & Informaões, p. A3

M unido de uma providencial carta em que o ex-chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios Maurício Marinho assume com exclusividade todas as culpas possíveis e imagináveis no escândalo de cobrança de propina nos Correios, o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, a quem Marinho nomeia explicitamente como chefe da quadrilha da estatal, na gravação que expôs a corrupção, demonstrou da tribuna da Câmara a validade perene de um ensinamento ouvido muitos anos atrás por um novato repórter. No seu primeiro dia numa câmara legislativa brasileira, ele aprendeu com uma parlamentar, familiarizada com os meandros do milieu, que ali havia de tudo - "menos bobos". Podendo ser tudo, menos bobo, ou "doidão", como dele disse Marinho, antes de se retratar abjetamente, Jefferson tentou o batido estratagema de transformar-se, de indigitado chefe da máfia dos Correios, em vítima inocente de uma armação erguida por interesses comerciais contrariados na Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), em cuja diretoria de Administração ele havia emplacado o correligionário e ex-deputado Osório Menezes Batista. Segundo Jefferson, não tendo conseguido que interferisse em seu benefício, os interessados, por intermédio de um certo "comandante Molina", tentaram chantageá-lo - justamente com a incriminadora fita de vídeo, trechos da qual a revista Veja acabou publicando.

Em olor de santidade, embora não explicasse por que não denunciou na hora a extorsão, negou se relacionar com Marinho, a quem só teria visto poucas vezes na vida. Citou a assombrosa passagem do texto de autoflagelação do funcionário da ECT em que este explica o flagrado recebimento de R$ 3 mil em cash não como adiantamento de propina, mas como paga por um serviço de consultoria que ainda viria a prestar. Teatralmente, proclamou que o seu partido punha à disposição do presidente Lula todos os cargos que porventura tenha no governo - como se, sem isso, Lula não pudesse dispor desses cargos - e anunciou que assinaria o pedido das oposições para a abertura de uma CPI do Congresso sobre as maracutaias nos Correios. E, finalmente, não teve pejo de entregar-se à peroração do troglodita que deixou de sê-lo.

A bem-sucedida coleta das assinaturas, por sinal, evidenciou a desorientação da bancada petista, excetuada a trintena de membros de sua ala esquerda, que subscreveram o requerimento na primeira hora. Antes do beau geste de Jefferson, a perplexidade dos demais refletia a saia-justa em que o episódio colocou o PT, dividido entre o medo de ser visto como abafador de um caso de corrupção e o de agravar as dificuldades do governo com a sua base aliada, ao se dissociar de um dos seus líderes mais preeminentes. Desse dilema, Lula não padeceu. Declarou-se solidário a Jefferson ("parceria é parceria") e repetiu a ladainha da inocência de todos até prova em contrário.

A CPI, naturalmente, é bem-vinda, se não se converter naquilo que o PT, no período anterior, queria que fossem os inquéritos parlamentares pelos quais clamava - um meio de desestabilizar o governo. No entanto, essa investigação sobre fraudes na área federal será, como as anteriores, um exercício de enxugar gelo. A corrupção só diminuirá quando mecanismos eficazes de controle do dinheiro público se combinarem com o estreitamento das oportunidades de apropriação política da máquina do Executivo. Isso depende visceralmente de uma mudança institucional que reduza ao mínimo o número de cargos passíveis de serem utilizados pelos governantes como moeda de troca para a formação de maiorias parlamentares.

Segundo o ministro da Casa Civil, José Dirceu, os chamados cargos em comissão somam cerca de 19 mil, dos quais algo como 6 mil não são exercidos por servidores de carreira. Com isso ele quis sugerir que ambos os números são modestos. É o contrário. Nos países com os quais o Brasil quer se parecer, como os Estados Unidos, França e Inglaterra, quaisquer que sejam os governantes de turno, as nomeações politicas somam uma fração disso porque o Estado é gerido por uma corporação burocrática estável e profissionalizada, à qual não se ascende por nomeação política. Enquanto o Estado puder ser usado para transferir recursos dos contribuintes para os caixas 2 dos partidos e as contas secretas de seus caciques - que de bobos não têm nada -, as promessas de "não deixar roubar" serão palavras ao vento.