Título: A crise na Bolívia
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/05/2005, Editoriais, p. A3

Em março, quando apresentou ao Congresso o seu pedido de renúncia, que foi recusado, o presidente Carlos Mesa esgotou os recursos teatrais de que podia lançar mão para amenizar uma crise que ameaça levar a Bolívia a uma secessão e à falência do regime democrático. Se há dois meses, pressionado por movimentos populares que ocuparam as ruas e as estradas do país e pelos partidos políticos sem os quais tenta governar, Mesa adiou o desfecho da crise com um gesto dramático de renúncia, agora ele enfrenta novamente os mesmos movimentos e a mesma falta de base parlamentar com medidas que assumem aspectos de amarga comédia. Duplamente derrotado no Congresso, que primeiro emendou o projeto da Lei de Hidrocarbonetos, elevando royalties e impostos a um nível confiscatório, e depois promulgou a lei que ele se recusara a sancionar, o presidente Mesa reagiu com a apresentação de um plano de governo até 2007, que tem como ponto forte a abertura de licitações para projetos de exploração de minério de ferro e a construção de portos e estradas. Seria cômico se não fosse trágico. O presidente Mesa pretende distrair a atenção dos bolivianos com um projeto de investimentos estrangeiros, justamente no momento em que o Congresso aprova uma lei que joga no lixo 72 contratos de exploração de petróleo e gás, as maiores riquezas do país, e, na prática, restabelece o monopólio estatal no setor. Não tem outro efeito a Lei de Hidrocarbonetos. Ela cria, para as empresas que têm concessões na Bolívia - entre elas a Petrobrás -, ônus fiscais que vão de 50% a 70% e submete as decisões estratégicas de pesquisa e exploração de gás e petróleo à estatal Yacimientos Petrolíferos Fiscales, o que torna inviável a presença das multinacionais no país. Nesse ambiente, nenhum investidor internacional atenderá ao convite do presidente Carlos Mesa para explorar ferro e construir portos e estradas. E o atual cenário não é o pior. Foram criadas as condições para a virtual expulsão das empresas estrangeiras da Bolívia, mas o principal partido de oposição, o Movimento do Socialismo (MAS), liderado pelo cocaleiro Evo Morales, a Central Obrera Boliviana (COB) e a Federação de Juntas Comunitárias de El Alto, que reúne movimentos indígenas, não estão satisfeitos.

Evo Morales agora posa de moderado. Quer a elevação dos royalties de 18% para 50%, que o governo fixe os preços do gás nos mercados doméstico e externo e que todo o gás e petróleo sejam industrializados na Bolívia, mas não quer que a indústria petrolífera seja nacionalizada. Radicais, os movimentos indígenas querem a pura e simples nacionalização do setor.

O presidente Carlos Mesa não tem base política própria para enfrentar a crise. A Bolívia está mergulhada em um caos institucional. As leis não são cumpridas, as autoridades não são respeitadas, as instituições nada mais valem. O que funciona são os grupos de pressão, que vão de simples organizações comunitárias de quarteirão a grandes grupamentos sindicais. E o presidente, que não tem partido e decidiu governar sem partidos, nunca teve força para controlar as forças que dilaceram o país. Em março, durante a crise que o levou a encenar a renúncia, num longo discurso Mesa queixou-se de que, em menos de dois anos de governo, teve de atender a mais de 4 mil reivindicações desses grupos e que, toda vez que não pôde fazê-lo, a reação foi o fechamento de estradas e violentas manifestações de rua.

A tradicional rivalidade entre os "índios" do altiplano e os "espanhóis" da planície, ou seja, entre as populações pobres e marginalizadas da zona mineira e os habitantes da região industrializada de Santa Cruz, está mais acirrada do que nunca, principalmente depois que a parte mais afluente do país decidiu fazer um plebiscito para iniciar um processo de separação do resto da Bolívia.

Na terça-feira, o comandante do Exército, general César López, fez uma séria advertência aos políticos, movimentos sociais e aos poderes Legislativo e Executivo, no sentido de que evitem que as discussões sobre a Lei de Hidrocarbonetos e as crescentes reivindicações de autonomia regional levem a Bolívia à desintegração. "Sentimos que estamos no caminho da desintegração; por isso temos de dar meia-volta nessa situação e preservar nossa democracia."

Na balbúrdia institucional que domina a Bolívia, já nada espanta. Muito menos que o Exército, para preservar a integridade do país e restaurar a ordem pública, rompa uma normalidade democrática que há muito não existe.