Título: Abuso de presos começou em Cabul
Autor: Paulo Sotero
Fonte: O Estado de São Paulo, 21/05/2005, Internacional, p. A22

Um relatório reservado do Exército americano mostra que a tortura de prisioneiros da guerra contra o terrorismo começou no Afeganistão. Muito antes da divulgação das fotografias sobre a violência que soldados e agentes americanos praticaram contra prisioneiros no Iraque, em 2003, a tortura sistemática já se tornara parte integral dos métodos de interrogatório de suspeitos usados pelos Estados Unidos em sua guerra global contra o terrorismo. Revelações feitas ontem por The New York Times, numa detalhada reportagem de duas páginas construída a partir de um relatório confidencial de 2.000 páginas das investigações internas do Exército sobre os abusos cometidos contra presos no Afeganistão, em 2002, mostram que a brutalidade e a perda de qualquer sentido de humanidade e decência já haviam impregnado a ação dos oficiais e soldados encarregados de obter informações de presos na primeira ação realizada pelos EUA em resposta aos ataques de 11 de setembro de 2001.

As informações publicadas pelo Times deixam claro, também, que os que cometeram as violências agiram convencidos de que seu comportamento era autorizado pelo secretário da Defesa, Donald Rumsfeld. Eles também acreditavam que estavam legalmente respaldados na reinterpretação que o presidente George W. Bush fez sobre a não aplicação à guerra contra o terrorismo das Convenções de Genebra, seguindo conselho de seu então assessor jurídico, Alberto González, que é hoje secretário da Justiça dos EUA.

A reportagem tem como foco o suplício e a morte de um motorista de táxi de Cabul, de 22 anos, conhecido apenas como Dilawar, e de um outro afegão identificado como Habibullah. Eles morreram num intervalo de seis dias, em dezembro de 2002, no Centro de Detenção de Bagram, ao sul de Cabul, depois de serem submetidos a sevícias iguais às praticadas nos porões da repressão nos piores anos das ditaduras latino-americanas. Dilawar, que foi preso logo depois da explosão de uma bomba em Cabul, mas não tinha qualquer vínculo com o Taleban, conforme concluíram os investigadores do Exército, passou mais de dois dias pendurado pelos braços em sua cela, antes de ser submetido a indescritíveis abusos por seus interrogadores, alguns dos quais são identificados.

Novamente algemado e pendurado pelos braços, com correntes, no teto da cela, Dilawar foi espancado até morrer. As informações sobre o caso foram prestadas por um intérprete do Exército que presenciou as cenas de violência. Segundo o Times, embora os investigadores militares tenham sido informados sobre o caso de Dilawar logo após sua morte, o inquérito interno avançou devagar. Em entrevista ao jornal em fevereiro de 2003, o então comandante das forças aliadas no Afeganistão, general Daniel McNell, negou que seus subordinados estivessem acorrentando presos nas paredes.

Sempre de acordo com o diário, os interrogadores de Bagram eram comandados pela capitão Carolyn Wood - a mesma que foi transferida em julho de 2003 para o Iraque, onde assumiu o comando dos interrogatórios em Abu Ghraib. Um inquérito de alto nível do Exército determinou que as técnicas de interrogatório aplicadas pela capitão Wood e sua equipe no Iraque eram "notavelmente similares" às usadas em Bagram. Em outubro de 2004, o Comando de Investigações do Exército concluiu haver provas suficientes para indiciar 24 oficiais e soldados pela morte de Dilawar. Até agora, apenas sete soldados rasos foram formalmente incriminados pelas torturas de Bagram.