Título: Por uma CPI séria
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2005, Editoriais, p. A3

O aspecto mais preocupante do atual cenário político nacional é a deterioração acentuada do confronto entre o governo e a oposição, a partir do escândalo da corrupção nos Correios e da conseqüente queda-de-braço em torno da criação de uma CPI do Congresso sobre o caso. No sábado, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, e o ex-presidente Fernando Henrique mandaram às favas o recato e a ponderação que deles é lícito exigir e se puseram a fazer declarações que só contribuem para aumentar as tensões, criando-se um clima no qual dificilmente a CPI poderá chegar aos resultados que a sociedade dela espera. A radicalização de parte a parte é meio caminho andado para transformar a CPI em um ringue para manobras espúrias e desaforos entre os partidos, obviamente em prejuízo das apurações e dos avanços institucionais que poderiam resultar de suas conclusões. Em matéria de palavras impróprias já bastavam, nesse caso pelo seu tom de deboche e verossimilhança zero, as do presidente Lula a um repórter, na sexta-feira: "Olha para a minha cara pra ver se eu estou preocupado com isso" (o eventual inquérito).

Prova da fingida despreocupação do presidente, no dia seguinte a cúpula do PT decidiu "orientar" as suas bancadas na Câmara e no Senado a não endossar o pedido da CPI, que, entre as suas 266 assinaturas (68 além do necessário), contabilizadas até o final da semana, continha as de 19 deputados petistas. Decerto para reforçar a orientação - a direção do partido não teve força para proibir formalmente a adesão, nem para exigir a retirada das firmas dos seus -, o ministro José Dirceu entregou-se ao terrorismo oratório, no melhor estilo do velho PT-oposição.

Acusou os adversários do Planalto de querer instalar "uma crise artificial para desestabilizar o governo", como reagiam os aliados do então presidente Fernando Henrique às tentativas petistas de levá-lo ao banco dos réus. A diferença é que o PT de fato usou o termo desestabilização em um texto partidário e jamais orientou os seus membros a abandonar a consigna "Fora FHC". Agastado com a notícia segundo a qual teria dito que "uma CPI minimamente bem-feita" fatalmente pegará o secretário-geral do partido Sílvio Pereira e o tesoureiro Delúbio Soares, Dirceu declarou que a alegação "chega a beirar o golpismo".

De seu lado, demonstrando que o PSDB não sabe fazer oposição, assim como o PT não sabe ser governo, o ex-presidente disse em discurso coisas que destoam do seu perfil de estadista e rebaixam a qualidade do debate público no Brasil. "Essa gente (o governo) cacareja sem parar e eu não estou vendo nenhum ovo", falou. Em outro momento e confundindo as festas, comparou os integrantes do governo a um "peru bêbado em dia de carnaval". E não faltou a sugestão de que a corrupção perpassa a administração Lula. Depois de mencionar que os vampiros voltaram e entraram nos Correios - alusão às licitações viciadas na Saúde -, corrigiu-se: "Não é vampiro, é cupim. Está em todo lugar."

Os problemas do governo - de rumos, competência, coesão e "requalificação" de sua fisiológica base parlamentar, conforme o eufemismo do presidente do PT José Genoino - já são suficientemente inquietantes para dispensar ataques carbonários ou teorias conspiratórias destinadas a abafar um inquérito a que o Legislativo não pode se furtar sob pena de empurrar para o mais fundo dos porões a sua própria imagem. O argumento oficial de que a CPI é supérflua porque a Polícia Federal investigará não só as maracutaias expostas nos Correios, mas também possíveis outras no Instituto de Resseguros do Brasil não se sustenta.

Pois, em ambos os casos, o principal suspeito é um deputado, o presidente do PTB Roberto Jefferson, a quem o presidente Lula considera seu "parceiro". Além disso, CPIs são oportunidades preciosas de mudança institucional. A que se pretende poderá abrir caminho para a redução drástica do número de cargos de livre nomeação, loteados entre os partidos. A imensa maioria dessas quase 20 mil funções, focos potenciais de fraudes na administração e nas estatais, deve ser restrita a servidores concursados - cujas carreiras a elas os conduzam naturalmente.

As privatizações, que o PT quer que se investigue, para confundir, retiraram milhares de nomeações da barganha política. A CPI dos Correios, se for séria, ajudará a fechar outras portas à corrupção.