Título: Contra a invasão chinesa
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2005, Editoriais, p. A3

O governo decidiu, num surto de realismo, regulamentar o uso de salvaguardas contra importações de produtos chineses que possam pôr em risco setores da indústria nacional. Não se trata só de impedir o ingresso de produtos fabricados com eficiência e com grandes vantagens competitivas. No caso da produção chinesa, nem mesmo é fácil determinar quanto do poder de competição decorre de vantagens legítimas e quanto resulta de práticas inaceitáveis pelos padrões internacionais. Mesmo sem levar em conta essa dúvida, o uso de salvaguardas é aceito internacionalmente quando um aumento grande e repentino de importações causa danos aos produtores de um país. A China aceitou o uso desse recurso ao filiar-se à Organização Mundial do Comércio (OMC). Era previsível a busca de proteção por empresários de outros países.

Pelo tamanho de sua economia e pela agressividade comercial, a China seria um parceiro difícil de acomodar nos quadros normais do comércio global. Além disso, não se pode classificar a economia chinesa como "de mercado", já que se mantém uma forte interferência estatal na formação de preços, nas finanças e no câmbio.

Apesar dessas limitações, o governo brasileiro, em novembro, aceitou reconhecer a China como economia de mercado, desde que algumas condições fossem cumpridas. O compromisso foi oficializado durante visita do presidente chinês Hu Jintao. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva disse que Brasil e China estavam "redesenhando o mapa mundial no que se refere ao fluxo de mercadorias e ao estabelecimento de novas rotas comerciais".

A China, pelo menos, vem redesenhando esse mapa há vários anos - mas à sua maneira e segundo seus interesses, que não coincidem, necessariamente, com os de outros países classificados como emergentes. A Argentina, também visitada pelo presidente Hu Jintao durante sua viagem à América do Sul, já regulamentou a aplicação de salvaguardas. Outros países o fizeram há muito mais tempo. Alguns parceiros muito importantes, como Estados Unidos e União Européia, estão um passo à frente, anunciando restrições a produtos chineses.

Americanos e europeus, mais cautelosos que o governo brasileiro, não só se prepararam mais cedo para barrar uma invasão chinesa, mas também se negaram, até agora, a reconhecer a China como economia de mercado. O governo dos Estados Unidos já limitou o ingresso de seis categorias de roupas de origem chinesa e impôs um teto ao crescimento das importações. A União Européia anunciou a disposição de criar barreiras, atendendo principalmente a pressões dos fabricantes de tecidos e de roupas.

É inegável a invasão dos grandes mercados pelos chineses. O último grande avanço ocorreu no comércio de tecidos e confecções, depois de extinto o sistema de cotas que vigorou até 31 de dezembro.

De janeiro a abril deste ano, o Brasil gastou com importações de produtos chineses 58,3% mais do que um ano antes. No caso de confecções, as compras nos quatro primeiros meses foram 148% maiores que as de igual período do ano passado. Também aumentaram explosivamente as compras de tecidos, fios e produtos de vídeo.

Com a regulamentação das salvaguardas, prevista para dentro de poucos dias, o governo poderá atender às queixas dos setores que puderem comprovar perdas importantes causadas pela expansão de importações de produtos chineses.

Diante da pressão internacional, o governo chinês decidiu adiantar-se e estabelecer, por sua iniciativa, impostos de exportação sobre alguns produtos. Deu sinais, também, de que o mercado de câmbio será mais livre, abrindo algum espaço para a valorização do yuan. O governo da China tem mantido sua moeda depreciada, contribuindo também com isso para aumentar o poder de competição dos seus produtos de exportação.

Não há por que acreditar, por enquanto, que essas iniciativas chinesas tornem a competição menos desequilibrada e mais justa. Mas negociações poderão tornar desnecessária a aplicação de salvaguardas, segundo as autoridades brasileiras.

Mas não basta cuidar do comércio oficial. A invasão de produtos chineses também está associada, tudo indica, a um intenso contrabando, e isso as autoridades brasileiras terão de combater internamente.