Título: Proposta americana provoca irritação
Autor: Joel Brinkley
Fonte: O Estado de São Paulo, 24/05/2005, Internacional, p. A12

Uma proposta americana para a criação de uma comissão na Organização dos Estados Americanos (OEA) a fim de monitorar a qualidade da democracia e o exercício do poder na América Latina está provocando uma reação hostil de vários países, em parte porque é vista como um esforço mal disfarçado para atacar a Venezuela. Roger F. Noriega, secretário-assistente de Estado dos EUA para assuntos do Hemisfério Ocidental e um dos principais arquitetos da proposta, disse na semana passada que não estava "surpreso com o fato de verem isso no contexto da Venezuela", mas acrescentou: "Estou decidido a fazer com que isso não seja considerado algum tipo de esforço para isolar a Venezuela." No mês passado, contudo, ele e outros funcionários dos EUA fizeram várias declarações ligando o esforço diretamente a sua preocupação com Hugo Chávez, o populista e antiamericano presidente da Venezuela.

Chávez reduziu a liberdade de imprensa e a independência judicial e construiu laços íntimos com Cuba, uma aliança que, mais que qualquer outra coisa, enfurece alguns funcionários do governo Bush. A relação entre os EUA e Chávez, que já era tensa, se deteriorou em 2002, depois que Washington apoiou tacitamente um golpe que o afastou do poder por um breve período. A animosidade se aprofundou desde então, o que explica em parte por que muitos enviados latino-americanos permanecem céticos quanto aos argumentos que Washington oferece para sua proposta.

"Será impossível vender essa explicação a um ser humano adulto", disse Rodolfo Hugo Gil, o embaixador argentino na OEA. Jorge Chen, o embaixador mexicano, afirmou: "Não creio que esta idéia vá ser aprovada." Alguns embaixadores latino-americanos dizem temer que a nova comissão se transforme num tribunal arbitrário, onde ministros intimariam representantes de certos países para ser interrogados e criticados. Funcionários dos EUA negam isso firmemente e dizem que estão apenas tentando tornar a organização mais relevante e efetiva.

"Tudo o que estamos fazendo é criar um mecanismo, um procedimento", disse Noriega. Um funcionário americano acrescentou: "Acreditamos que deve haver prestação de contas quando países violarem a Carta Democrática da OEA." Chen afirmou não desejar que nenhum plano "venha do alto" - em alusão ao antigo temor da América Latina de que os EUA imponham sua vontade.

A proposta americana será apresentada para aprovação durante uma reunião da OEA no início de junho na Flórida. Ela surgiu de uma declaração feita no mês passado em Santiago pelo chileno José Miguel Insulza, o recém-eleito secretário-geral da organização, sob insistência de funcionários americanos.

"Os governos eleitos que não governam democraticamente devem ser responsabilizados pela OEA", disse ele, tendo a seu lado a secretária de Estado americana, Condoleezza Rice. Ela e outros funcionários de Washington obtiveram a declaração de Insulza em troca do apoio americano a sua candidatura. A maioria dos líderes latino-americanos diz não compartilhar o temor de Washington sobre Chávez.

A OEA representa 34 nações, do Canadá à Argentina, e, embora discuta grandes questões políticas, tem evitado interferir nos assuntos internos de seus membros. A proposta americana não foi tornada pública, mas vários funcionários do governo a descreveram. Sob o plano, a OEA criaria um comitê cuja missão seria ouvir sindicatos, advogados, grupos de cidadãos e organizações não-governamentais com inquietações em relação a seus governos. "Não há um mecanismo formal para isso hoje", disse Noriega.

Se a comissão identificasse problemas, poderia propor missões diplomáticas ou outros remédios não especificados. Mas os embaixadores disseram temer que a própria existência da comissão se mostre altamente constrangedora para as nações intimadas.

Além disso, afirmou Gil, o embaixador argentino, "ninguém pode ter certeza de que, no futuro, não será intimado e julgado por essa comissão daqui a um ano, dois anos, três anos". O embaixador hondurenho, Salvador E. Rodezno Fuentes, afirmou: "Temos de nos sentar e ver o que os EUA pretendem com isso. Acredito que alguns Estados não estão preparados para isso." Gil declarou: "Todo país tem seus problemas. Mas posso lhe dizer uma coisa: os países mais poderosos nunca estarão lá (ante a comissão)."

Altos funcionários do Departamento de Estado disseram ter consultado aliados importantes dos EUA na região quando elaboravam o plano. Solicitados a identificar países, citaram a Argentina e o Chile. Gil afirmou que não foi consultado e se opõe firmemente à proposta. E Esteban Tomic, o embaixador do Chile, disse que seu país "está examinando" uma cópia recebida recentemente. "Ainda não formamos uma opinião", ressaltou.

Sublinhando a hostilidade à proposta está um temor mais amplo de que os EUA permaneçam "fixados" na Venezuela, como disse um embaixador, enquanto democracias latino-americanas lutam para sobreviver. "Em muitos países, as pessoas estão perguntando: 'Qual é o valor da democracia se ainda vivo na pobreza?'", assinalou Tomic. "Muitos países correm sério perigo", acrescentou. "Eu não gostaria de apontar para a Venezuela em particular quando ainda temos esses problemas de pobreza e miséria extrema."